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18.1.08

Clara


Invariavelmente, com raríssimas exceções e sentimento de auto-preservação aflorado – e aqui ainda digo de minha implicância com a palavra aflorado e seus usos -, afirmo com toda verdade consolidada em anos de observação, um experimento macabro e ainda assim digno, que em matéria de amor eu entro de cara... a desgraça é que quando entro de cara elas entram com a mão, fatalmente. Culpa de dona Rita, acredito, a mulher que me fez sofrer nos seis anos em que demorei na conclusão do ensino fundamental, quando o normal seriam quatro. Dona Rita dava aulas de matemática e me salvou de um destino tedioso.

Eu não sabia de matemáticas... minhas experiências escolares nesse sentido giravam em torno do medíocre, engraçadinho e reprovado... mas senti falta de um teorema naquela hora, era natural depois de tanto fugir e tendo Clara ao alcance das mãos, literalmente ao alcance das mãos... eu tinha essa chance de defesa.

Dos fatos: o bar com pouca luz e quase vazio, ela de frente para mim, metade dos neurônios me mandando cair fora, pois, tal qual um terorema, os fatores disponíveis davam certeza de que eu ia me fuder... entretanto, a outra metade deles, mais articulada politicamente, me fez não cair fora, daí que eu estava, assim, disposto a encarar sorridente o abismo, como a dizer: “sou eu, de novo”... a intimidade com o abismo me permitiria dançar sobre ele em breve, aí sim eu estaria pronto. Um plano arriscado, confesso, mas válido. No mais, eu não acredito em matemática mesmo.

Clara é feministas desde vidas passadas, antes do conceito, por assim dizer; isso é coisa que leva à sério e não permite que se brinque. Tem o maior orgulho em dizer que o nome Clara é uma homenagem de sua mãe à Clara Zetkin, a alemã que propôs, em 1910, o dia 8 de março como dia internacional da mulher. Pois é, isto posto e eu ali, ouvindo de forma detalhada seu assassinato na Idade Média, quando numa dessas vidas passadas ela foi morta apenas por ser uma mulher à frente se seu tempo.

Eu reprovei em matemática, português também, mas principalmente matemática, e aprendi a ser tolerante com a fertilidade da imaginação alheia. E curtia o papo. Ela de repente parou e olhou para o telão, passava um show dessa nova geração de cantoras, “mais um show feminista”, ela admirou. “Mais uma reunião da sapatas”, provoquei automático. Ela me reprovou com os olhos e eu pedi desculpas... o decote tava lindo, porra!

Ela me falou, acusadora, que os homens em geral têm medo das “sapinhas”, pois elas apontam em direção a uma sociedade de amazonas, onde nós, machos, seremos refugo. “Nós só precisamos de uma espécie de fazenda onde criaremos machos para produção de esperma, isso se a ciência não conseguir construir algo mais eficiente. Pesquisas recentes apontam nessa direção”... ciência é um treco do mal, cansei de repetir.

Primeiro pensei em mim confinado em uma baia com uma mangueira acoplada no meu pênis... depois, como eu não seria um macho padrão, pensei em mim banido, vivendo nos subterrâneos e comendo ratos enquanto uma sapatinha passeava com a namorada em minha moto na superfície... eu tinha que reagir, citei meu amigo Ernesto... meu amigo Ernesto diz que nós homens ensinamos o caminho do corpo à mulheres, os primeiros anatomistas e tratadistas da matéria eram homens, “nós ensinamos o caminho científico do Clitóris, a estrada da auto-suficiência”... Depois eu falei de Reich, mas foi um erro total, uma estratégia equivocada. Primeiro porque a mina é reichiniana, sabe mais sobre ele do que eu, segundo por causa do Ernesto, ele tá tão fodido quanto eu, ou mais, pois além de ser macho, solitário e vertiginoso, o cara ainda é marxista, tem que se preocupar com a luta-de-classes somada ao elemento clitoriano. Ernesto a me dizer: “o caminho do clitóris, cavamos nossa própria cova, que tragédia! Vão tomar outra, cara?”.

Ela teve piedade, parou o massacre e propôs um empate... eu não tinha condições de recusar. Depois na cama, sob a luz da vela, exaustos e debaixo de meu lençol, ela, abraçada em minhas costas, falou baixinho no meu ouvido, talvez afagando meu brio de macho, talvez debochando do perdedor, ela disse, voz suave e linda, quase cantando: “vai ser uma pena, uma pena mesmo... vai ser uma pena abrir mão de vocês”. Eu tive a certeza de que não precisava de um teorema.

10.1.08

à guisa de desejo, quase retorno...


Pensa no Fausto,

Pensa na espessura da queda

(a queda pode ser doce)

Nunca te esqueças de Artaud, dos duplos

Não existe limite entre arte e vida,

de resto é estelionato...

Leia umas páginas do Céline

E se tudo for em vão

Percorra o velhão

Um poema bêbado de Bukowski...

Depois beba uma cerveja no balcão do bar

Não te esquecendo de simular no rosto

O semblante de quem sabe o que está acontecendo.


20.10.07

Duda Bandit vê paisagens...

Para a menina de Madrid



O sol queria fazer sentido, nuvens indecisas pairavam no horizonte, senti gotículas de chuva em meio aos raios da manhã. O ruído da motocicleta embalava minhas reflexões sobre as distrações de nossas almas corroídas pela dúvida... felicidade é distração, cansei de repetir.

Uma partida que não joguei, teimei em dizer a verdade e paguei um preço salgado à prestação... bem feito pra mim... é tudo tão simples quando sou jogador, gargalho enquanto dou voltas e mais voltas no mesmo blefe... mas cansei, estou, digamos, sem paciência para sustentar personagens e tenho mandado à merda os cirquinhos da vida...

Ontem uma tarde de píer, líquida... hoje uma manhã de estrada, ensaio de viagem na impossibilidade do asfalto absoluto. Foram apenas 200 quilômetros, dezenas de curvas e as paisagens que me alentam...

Sempre um verso de Ana C me assombrando, “no flanco do motor vinha um anjo encouraçado”... e resoluções: nada de compras à prazo; perdoei também todos que me deviam, eles não iam pagar mesmo, 18 anos depois eu me tornei o cristão que sonhei ser aos 12, compreendi o Cristo, por assim dizer... é uma religiosidade por eliminação que me resta, uma vez que perdi meu ódio e minha capacidade de amar não tem trazido muita coisa também, só a cruz.

Minha capacidade de amar... tenho falado de uma vida menos sórdida, nas entrelinhas, dos desenlaces e estranhamentos de um serzinho potencialmente apaixonado em sua quixotesca busca pela paz na cama e na vida. Tudo em vão.

(Um cachorro late longe, lembro de Jacimar, o cãozinho do décimo andar, vem a tristeza pela sua morte. Eu desejei a carrocinha para todos os de sua espécie até conhecê-lo. Jacimar me fez entender que os cães, assim como os homens, são únicos, e se diferem pela forma como amam, nada mais. Jacimar tinha o olhar existencialista, a paciência oriental. Sentava-se sereno na porta do elevador de serviço à espera de alguém que subisse e desse uma carona. Ficava ali até atingir o andar mais próximo do décimo. Jacimar parecia um homem carregando nos seus ombros o peso da condição humana, e penso que seu semblante ao ser atropelado foi esse, certamente teria recitado um poema apátrida de Kafavis.)

Assim, com essas e outras tristezas e frustrações, além de risos ocasionais, passo tardes à beira-mar sentado na motocicleta, tardes de píer, e acredito que a Bachiana Brasileira No.5 de Villa-Lobos é a trilha sonora de tudo aquilo que me cai nas mãos e depois escapa... desiderato.

Nunca é demais repetir, estou de saco cheio desse jogo, mas nada me resta senão jogar... sou obrigado, vendi a alma... aliás, apostei. Com cinco cartas na mão visto summer e tenho um charuto na boca... uma vez bandido, sempre bandido, julgamento sumário. Mais uma coisa: Se for para sofrer que seja ao menos com elegância.

Chega a hora de mostrar as cartas, mas não quero agora. O carinha meio louco do apartamento de baixo voltou a tocar piano, eu já não ouvia isso há meses... uma melodia suave e melancólica, deitei no sofá e não pensei em mais nada, meus neurônios agradeceram a folga, sentaram-se, acenderam um cigarro de palha e fumaram leve, brandos, sem pressa de voltar à partida. Felicidade é distração.

13.10.07

BLANCHE

Piazzola, a embriaguez de destilados e um tango desperdiçado... “música contemporânea de Buenos Aires”, me dizia Blanche. Referia-se às esquivas que Astor Piazzola realizava para calar os puristas de San Telmo. Eu não estava interessado em ritmos latinos, mesmo que com colorido europeu e jazz, mas era tudo recalque de uma alminha brasileira inquieta... Tudo que eu queria era “discutir a relação”, deu na cabeça de repente, foi, é remotamente possível, inveja... inveja de casais que percorrem juntos corredores de supermercado e andam de mãos dadas em volta do laguinho no parque... “olha a tartaruguinha, amor”... Inveja pressupõe ódio, e como me falta interesse e sobra preguiça para tanto (ódio exige dedicação), não, acho que não foi inveja... mas queria discutir a relação, não importava que pouco nos víamos e que ela praticamente debutava em minha cama, e naquele dia trouxe a porra do CD do Piazzola.

Blanche é atriz, diretora de teatro, dramaturga e resolveu dar pra mim... e eu querendo discutir a relação... sempre a falta de prática, de tato... “Eu tenho saído com outras mulheres, você se importa?”, provoquei. Ela tragou o cigarro mentolado, uma febre entre as mulheres perigosas, perigo potencializado se elas estão só de calcinha deitadas na cama e o cinzeiro ao lado do encarte da porra do CD do Piazzola. Lançou a fumaça ao som de “la muerte del angel”, me olhou, riu cínica e respondeu que não tinha problema, que “tá tudo bem”, afinal de contas, “eu também tenho saído com outras mulheres”... rolou na cama e ficou de bruços olhando o teto. Eu tenho trinta anos e sou um carinha que disfarça bem os preconceitos, mas vi que qualquer possibilidade de discutir a relação tinha sido frustrada por caso fortuito...

Eu deitei de bruços ao lado dela e apreciava o Quinteto Biyuya em “la ressurreicion del angel”... “minha namorada”, ela disse depois de um longo silêncio, “chega na quarta. Fica uma semana. Nesse tempo sou só dela. Mas depois a gente se vê de novo, te acho um moço muito bonzinho”. Eu mudei de assunto, dizia que era bacana quando o Astor tocava sanfona, ela riu de mim e disse que aquilo era um bandoneón, me explicou as diferenças enquanto eu fingia prestar atenção, por isso não entendi nada, é uma estratégia que uso desde a escola primária, sou um moço muito bonzinho... eu falei que me amarrava na voz de Carlos Gardel e nas letras dos tangos, ela me respondeu que não gostava de tango, só de música contemporânea. Pensei na namorada de Blanche, como ela devia ser, o que fazia da vida, mas não falei nada... Blanche brincava com os calos do dorso de minha mão, herança do boxe.

Perguntei se ela concordava que a traição era um traço genético que algumas pessoas herdam de sociedades antepassadas, os homens infiéis possuem ancestrais poligâmicos, já as mulheres infiéis ancestrais poliândricos... falei tudo com ar professoral para afastar a possibilidade dela achar que era deboche, queria dar um ar científico à coisa... existiam alguns antropólogos do meu lado, não sabia o nome deles, muito menos lido, mas eles certamente não negligenciariam um tema central por excelência. Blanche fez uma pausa, parecia que nem tinha escutado a pergunta, depois confessou nunca ter pensado no assunto, que era um ponto de vista interessante, e que ela certamente vinha de descendências misturadas, mescla dos dois sistemas...

Eu já perdia por dois a zero, pensei noutra estratégia, podia buscar na prosa a solução surrealista da escrita automática, eu ia falar o que desse na cabeça sem me preocupar com quem ouvia, mas tava de saco cheio de André Breton e sua quadrilha (de novo os recalques de uma alminha brasileira inquieta).

Blanche me olhou, deu um sorriso lindo. Perguntou por que eu estava tão calado. Eu continuei calado, retribui o sorriso, dei um beijo suave em sua boca e fui na cozinha beber água. No caminho pensei em Bandoneóns, em milongas, tragédias e Jorge Luís Borges... depois decidi banir da minha vida todas as mulheres que lidam com teatro e curtem “música contemporânea”.

20.9.07

"IL"...


Eu não falo em paisagens, antes falo de acordar junto, com toda a delicadeza e horror provenientes da entrega – o que por si, uma vez que estou sozinho e nada me resta senão lembrar, me vem à cabeça, imagem vigorosa, teimosa, contumaz, lusco-fusco no horizonte, fragmentos da madrugada... nesta noite tinha a chuva, barulho da enxurrada na escada, os gemidos e a confusão do corpo, surpresa de detalhes descobertos depois de doze revelações, dedo deslizando em pele lisa, perfume natural, narina em brasa... mas os malditos neurônios não se calaram um minuto.

Foi nesta atmosfera caótica que deixei "IL" radiante na porta de um táxi ao amanhecer, ela me deu um beijo no rosto e fechou o vidro enquanto apontava o caminho para o motorista, articulava os lábios e eu não ouvia o som, foi quando me lembrei de filmes mudos e uma adolescência hedionda. Tenho descansado meu Jack Daniels, uma vez que uísque remete a outra atmosfera, um caos que se ressente de ser caos; destarte, no dia em que nos conhecemos, eu bebia um vinho de tanino suave, taça pousada e nossa conversa circulando a mesa, vozes em dueto... eu dizia que tinha saído de dois relacionamentos conturbados, ela me dizia que vivia no inferno. Simpatizarmos era um imperativo, jamais uma vontade...

Os imperativos acabam em cama, é um fato. Mas os fatos se repetiram por seis semanas e doze trepadas. Na quinta vez ela me confidenciou que adorava dormir semi-nua, protegida apenas por calcinhas minúsculas, mas o marido proibia. Queria "IL" de blusa grande, saia e meias, só a tocava nestas ocasiões, sem retirar nenhuma das peças... eu não perguntei o motivo, nunca simpatizei nem antipatizei com pessoas que possuem fantasias sexuais, eu sou até capaz, por educação, de ajudar a realizar uma ou outra de menor potencial ofensivo, mas acredito que seja coisa de gente média com pouquíssimo tesão e atração pelo corpo em si, coisa da manada, Paulo Maluf deve ter fantasias sexuais parecidas com as de Marta Suplicy... "IL" não tinha fantasias sexuais, apenas queria ser fodida decentemente, ao mesmo tempo eu andava em vias de recuperação de minha libido perdida em curtos-circuitos sentimentais recentes... ela teve paciência, compreensão e doçura... por isso sou grato a "IL", mas dormir junto nunca fez parte de meus planos, muito menos em minha cama.

O marido de "IL" viajou na sexta e só volta no final da tarde deste domingo, eis o trilho que a trouxe esta noite. Descobri quando perguntei se ela não ia embora, e doce, musical, ela explicava enquanto pedia acolhida com os olhos... dizia que ia ficar sozinha em casa, que Ele (sempre se referia a ele como Ele) tinha ido para um congresso religioso, citou uma palavra que lembrava construção civil, e depois lamentou-se que era trocada por reuniões, representações, enquanto a imagem do demônio era associada a ela por Ele e por todos os membros da famigerada denominação.

Pouco compreendo o quadrangulares e os pentencostais da vida, nem faço esforço... naquela hora eu só tinha uma coisa a fazer, foi quando enlacei "IL" nos braços e a levei de volta à cama, tentando buscar na essência de sua flor a força da terra, a genealogia do divino.

"IL" amanheceu em meus braços, pediu um copo d'áqua e disse que precisava ir, chamou o táxi e descemos... o carro virou a esquina e caminhei pela rua ainda úmida enquanto o sol ameaçava despontar, eu desviava das poças, mão no bolso, em direção à padaria para o primeiro café do dia, meio que sorridente, meio que melancólico, duas certezas pairavam, a da poesia do momento ao lado do conforto da ultima vez, além de reflexões acerca de quantas vezes eu ainda repetiria este ritual com outras mulheres, um gato atravessou a rua e pulou o muro, baratas se escondiam nos bueiros que eu saltava, e depois moscas no balcão... a vida, verdade irrefutável, fluía, fluía... tive ímpeto de me matricular em um curso de yoga, jogar I ching, transar meu lado transcedental... mas o café chegou repelindo qualquer capricho de metafísica, não é hoje que vou levitar.

27.6.07

Duas semanas...

Duas semanas, Hibari ligou apenas uma vez, e rápido. Hanna deve estar conversando com o homem do paletó negro numa noite morna. Dimitri teve aqui de manhã, me acordou, o sacana. Sábado e o filhodaputa tecla meu interfone às nove da manhã.

-dormindo ainda, Duda?

-não, tava costurando minha fantasia pro carnaval do ano que vem.

-posso subir?

-se eu não deixar você vai embora?

-não.

-então sobe.

Abri a porta e fui na cozinha fazer um café, mas desisti. Enchi um copo com água e fiquei sentado no chão olhando o teto. Dimi entrou, veio até a cozinha, acendeu um cigarro perguntando ao mesmo tempo se podia fumar, nem me dignei a responder. Ele sentou num banquinho e ficou me olhando com cara de sambista em início de roda de samba, o chapéu imitando panamá e a camisa branca meio aberta ajudavam na caracterização, ficou ali me olhando com um meio sorriso. Quebrei o silêncio.

-bicho, são nove e vinte. Cê não dorme não?

-durmo, mas é que faço parte da malandragem sindicalizada. A gente abusa do horário e faz farra durante a semana, mas no fim-de-semana a gente tem trampo, amanhece na rua e não dorme... é assim que a gente encontra contatos importantes, realiza negociações paralelas ao... digamos... fluxo mercantil formalizado! Fui mostrar um terreno prum cara sete da matina, o sujeito é aposentado, mas gosta de acordar cedo. Se sair negócio garanto o buteco do mês. E eu levo jeito pra corretagem, hein? Tenho futuro nessa carreira.

-carreira, Dimi... eu sei pra quais carreiras você leva jeito, brother...

-essas também.

Dimitri era um malandro ex-leninista, ex-trotskista, ex-maoísta, que curtia uma de seguidor de Rosa Luxemburgo nos botecos e tinha o desejo pragmático de compor a "terceira via" vez ou outra, esse desejo sempre vinha quando ele estava sem grana e queria ocupar um cargo comissionado no governo, qualquer governo. Mas ele não precisava de muito dinheiro para viver, era amparado por duas mulheres: uma "amiga" e uma tia. Morava com a tia que preparava Nescal gelado todas as tardes antes dele sair em direção à universidade em cujas salas de aula ele pouco chegava, fazia filosofia há uns dez anos, no mínimo. Na amiga o malandro passava na entressafra de mulheres, saía de lá sempre com algum para a cerveja e o ônibus.

Dimi me chamou para sair, ir na Vila Rubim beber umas. Eu tava mal humorado, aliás estou sempre mal humorado sábado de manhã. Saí assim mesmo, pensando por que eu andava com esse tipo de gente, mas dando uma olhada no visual do cara, vendo a paixão que o sujeito tinha pela vida, respondi minha pergunta... Não suporto gente parecida comigo, detesto burocracias e burocratas. Dimi não tinha vocação para a burocracia, seu desejo de ocupar cargos em governos vinha do desejo de ter um emprego ao invés de um trabalho, nada mais.

-mas a gente vai à pé, Dimi?

-caminhar alonga a vida, bandido.

-já tou preparado pra morte, porra.

A gente caminhava em silêncio, da minha casa na rua Sete até a Vila demoravam aproximadamente vinte minutos em passo suave. O sol estava agradável. Eu pensava em minha cama ainda. Um cão vagabundo andava pela calçada, já devia ter dado muito drible em carrocinha, mas não se assuntou comigo e com Dimi, sentiu-se irmanado, até voltou e seguiu um pouco nossos passos, mas desistiu quando viu que íamos para o lugar que ele acabara de deixar. "Leva pra você", brincou Dimitri.

-não, tá melhor na rua... Mas se eu levasse daria a ele o nome de Augusto, o cão da meia-noite... homenagem a Marcos Rey.

Seguimos calados, eu já me acostumava com a idéia de ter acordado cedo no sábado. O mercado da Vila Rubim estava cheio, as ervas, temperos, lixo, tudo entrava pelas narinas deixando um aroma único, cheiro de vida, de realidade... paramos numa banca e compramos amendoins na casca, depois pedimos cerveja num boteco, chegou estupidamente gelada, a primeira refeição do dia, amendoins frescos e cerveja. Dimi começou um discurso a respeito dos benefícios do amendoim e sua aplicação culinária, citou Gilberto Freire e Câmara Cascudo, ele sempre citava os dois quando falava de comida. Depois me perguntou sobre a vida e as mulheres.

-dá para separar?

-como?

-dá para separar as duas coisas, vida e mulheres? Na minha vida não, Dimi.

-é. Você tá meio derrubadão. Duda Bandit chega à decadência.

- tão na cara assim?

-uhum...

Aquilo me alertou. Eu sabia que tava meio murcho, as meninas no fórum comentavam que meu sorriso tava meio triste, mas até aquela hora as coisas não estavam tão claras assim, ao menos para mim. Minha primeira reação foi o ataque:

-vai pra porra, Dimi. Eu penso em mulher no sentido coletivo, uma ou duas não são capazes de causar danos consideráveis na minha carapaça. E eu tô muito bem, falou... decadência!... tenho desprezado mulher, bicho.

-então é mais grave. O velho Bandit desprezando as molecas é sinal de degeneração dos tempos, da classe dos ordinários.

Dimitri começou a rir. Eu achei que tava na hora de tentar me abrir, mas nem eu sabia ao certo o que sentia. Fui devagar, escolhendo as palavras.

-você tá rindo, cara... Mas agora vou falar sério – dei uma golada na cerveja para ganhar tempo e prossegui –, eu tenho estado sem ânimo mesmo... Sem paciência para ouvir papo de menina, sem aquela garra que eu tinha para ir atrás de um rabo-de-saia onde quer que ele estivesse... e tenho tido ciúme, é pode rir, tenho tido ciúme da Hanna com o babaca que ela arranjou, tenho tido raiva da Hibari porque ela não vem embora de Belo Horizonte... e tenho tido pena de mim, cara... autopiedade, já pensou nisso?... tem hora que dá uma vontade de chorar, uma coisa meio louca de vagar pela casa buscando algo para fazer e não achando nada interessante, e aí pego o capacete para rodar pela cidade e fico sentado com ele no sofá vendo novela, desanimo de sair... Eu ainda chego às vias de fato, irmão. Eu tô quase chorando por solidão, a mesma que me foi tão grata no passado.

-eu choro.

-porra, mas você chora até em final de brasileirão, Dimi. Eu não, sempre fui mais árido pra isso. Mas ainda não chorei, só estou compartilhando uma preocupação. Se a coisa continuar assim...

-vai passar...

-passa sim, mas você não conhece aquela do Millor? “Átila também passava. E todos vocês sabem o que acontecia com a grama”. E tem mais, rolo compressor também passa, furacão, mas e o que sobra é suficiente, cara?

-ih!... vamos pedir mais uma. O mano véio tá precisando encher a cara. Vamos conversar sobre O banquete de Platão.

-vão!... Começa com você...

Ficamos ali, eu e Dimi. Falando sobre o mito de surgimento do amor misturando Platão, Ovídio, Santo Agostinho, Shopenhauer, Nietszche e Barthes. Um papo sem metodologia, mesclando conceitos, sem culpa, atribuindo citações nossas a algum filósofo para dar mais peso à argumentação... foi uma bela manhã de sábado que se estendeu até o fim da tarde. Dimi foi direto pra casa da "amiga" trepar e dormir... eu fiquei vagando pelo centro, bêbado de filosofia e cerveja...

24.6.07

Sábado e feriado ao mesmo tempo...


Sábado e feriado ao mesmo tempo, Tiradentes mais sem graça. Acordei quase às duas da tarde e nem saí ontem, fiquei em casa vendo
Como água para chocolate na cama sozinho (coisa de veado, tenho que admitir), depois li umas páginas do Tristessa de Kerouac e, putamerda, quando o cara mistura estrada com budismo de bebum só vômito mesmo, um pé-no-saco. Fui dormir quase às três da madrugada. Quando levantei, preparei um café forte, cozinhei macarrão penne al dente e fiz um molho misturando manteiga, alho, creme de leite e queijo prato. Abri uma garrafa de vinho e fiquei ali comendo, achando aquilo o máximo e nenhuma fêmea para me dizer isso.

Recebi uma ligação no celular, era Hibari. Dizia que o famigerado (palavras minhas) congresso feminista tinha sido "o máximo", que a mulherada preparava-se para "avançar em um estágio espiritual superior", que estava muito feliz com isso, que tinha conhecido uma terapeuta reichiniana que era "o máximo também" e que ia ficar na casa dela uns dias. Eu fiz macarrão, amor. Ela nem ligou, continuou na da seguidora do Wilhelm. Depois disse que ia desligar e desligou falando em talvez ficar um tempo ainda maior por lá, "muito trabalho a ser feito".

Se fosse um ano antes isso seria meu sonho. Adoraria que ela fosse pra um congresso destes e não voltasse, mas agora, depois de um longo processo em que ela quebrou as barreiras de meus preconceitos, que violou cada muralha de minha solidão voluntária, agora ela ia me deixar sozinho esse tempo todo?

O macarrão ficou meio sem graça, o vinho virou vinagre e resolvi sair de moto para arejar meus preconceitos. Essas feministas espiritualizadas são um câncer a ser expurgado da sociedade, são piores que as feministas petistas ou as feministas machinhos, pois seu poder reside na sutiliza, elas chegam como quem não quer nada, ouvem a gente, concordam cinicamente com o que dizemos, mas na verdade preparam anotações mentalmente, nos medem, testam nossos reflexos, dissecam nossos nervos, pontos de vista, depois processam um plano sórdido para entrar em nossas fortalezas e invadem rápido, as malditas, espalham fontes de água e jardins japoneses nas nossas praças vencidas, as janelas de nosso ser são enfeitadas com jardineiras de gerânios, espalham pelas mesas de canto vasos de gérberas... um nojo, um saco. Quando certificadas da vitórias elas nos ameaçam, tacitamente, de dar no pé, as plantas ficam meio murchas, tristes, as carpas emagrecem a olhos vistos, umas bárbaras, isso é que elas são, umas bárbaras...

21.5.07

Eu fui chamado de danna


"No flanco do motor vinha um anjo encouraçado"
(Ana C.)

Eu fui chamado de danna com todas quase todas as prerrogativas do título, “quase todas”
porque meu reinado somente tornava-se completo durante o banho. Chegava em casa e lá estava meu robe e minha caneca, mas eu mesmo tinha de fazer meu chá, nem me importava, desde que tivesse tudo no banho... ninguém gastou tanta água quanto eu e Hibari, nossos banhos duravam horas e horas... é por isso que a hora do banho se tornou um momento delicado, é tão doloroso abrir o chuveiro sabendo que quando retirar a espuma do rosto e abrir os olhos ela não vai estar do meu lado, rindo delicadamente enquanto a água escorre pelo cabelo, face, seios, barriga, púbis, pernas, pé...

Acabo de sair do banho, tenho meu robe e minha caneca, reluto em dizer que recebi um telefonema de Hibari e que ela diz que não volta mais, que o que “vivemos foi uma coisa única”, “nunca me esquecerá”, mas que seus planos e projetos não me incluem, pois percebeu “certas opressões em nosso cotidiano” e fatalmente haveríamos de nos “tornar carrascos mútuos”, numa relação pobre e melancólica, falou ainda na "necessidade" de dissolução da minha couraça e das conseqüências energéticas disso tudo no meu equilíbrio interno, ela disse que enquanto eu não conseguir exprimir todos os meus sentimentos, emoções e carga sexual dentro da relação, prezando o amadurecimento de meu amor, jamais encontrarei a satisfação e a paz... não é só, levantou ainda injúrias contra meu pênis, disse que o fato de eu ter um pau duro sempre disposto ao sexo de nada adianta uma vez que estou bloqueado para os orgasmos etéreos, me acusou depois de travado e insensível... porra, isso que dá um mês na casa de uma terapeuta reichiniana...

Vejamos, eu não tenho nada contra Wilhelm Reich e suas seguidoras (pelo menos até então não tinha). Segundo, eu acredito piamente que as xoxotas libertas tendem a tornar o mundo um lugar melhor para se viver, agora o que não aceito, de forma alguma, é que a tempestade do Sexpol caia toda no meu telhado, eu nunca fiz terapia, meus ódios e melancolias foram sempre tratados no boteco ou no corpo delas, e me sinto bem assim, ser feliz nunca foi um desejo consciente meu, gosto de olhar o mundo de minha forma ranzinza e cinza, assim fico mais sensível a qualquer colorido que realmente destoe na paisagem, quero dizer ainda que, apesar dos sorrisos no bar ontem à noite, não encontrei de novo a estrada de asfalto firme em que me aventurei outrora, antes de Hibari pedir carona... tá cada vez mais difícil segurar a motocicleta na curva. Incomoda-me também o ar vingativo que suas palavras adquiriram, era como se o pé-na-bunda recebido fosse o troco pelo sofrimento que causei a todas as mulheres, a contar dos lanches roubados na primeira série, nesta visão minha angelical menina tornou-se um daqueles anjos vingadores, depositários de um misticismo cruel e sinistro... Para finalizar, uma vez que receio destruir tudo o que escrevi até agora, destaco que a frase mais triste de todo o texto está aqui, apesar da falta de poesia e devidos adornos: Hibari não volta mais.





(Este é um dos capítulos finais de "HH, uma novelinha escorada". Vou sumir umas semanas para tentar harmonizar o que já escrevi, se bem que a definição real disso tudo só chega em julho... falo de vida)

20.5.07

decido falar sobre Hanna...

Decido falar sobre Hanna e as torpezas de nossa paixão idealizada, de como a gente se trancava em quartos de hotel durante o fim–de-semana, ou circulava pelos motéis dos arredores da ilha, hábito que se tornou mais raro depois que Hibari mudou-se para minha vida. Ela tinha 18 anos e usava roupas escuras, olhos contornados em negro, uma pantera, a despeito da idade... Hanna sempre teve o olhar maduro. Alguns meses depois ela já não usava o mesmo visual, mas continuava linda, ferina, mudei o apelido de pantera para tigresa, tudo inspirado em Sônia Braga e Márcia Denser.

Hanna queria ser escritora e eu gostava de ler livros... Nossa relação literária evoluiu para a cama enquanto discutíamos o conceito de criação na decadência das vanguardas... Ela quase venceu minhas barreiras, a cada trepada com Hanna sentia-me mais dependente dela, daí que eu fugia um pouco, evitando a vivência diária. A gente se via uma ou duas vezes por mês e foi assim que me livrei de uma intimidade que pensei não ser capaz de oferecer à nenhuma mulher.


Nossa cama-mesa-chão-carro acontecia de forma selvagem e alegre, nada do sexo melancólico ou carregado de sutilezas, tudo acabava em diversão e com o sangue pulsando mais forte nas veias, me sentia vivo e varonil... daí o paradoxo presente em certa suavidade, pois Hanna me fazia esquecer do que eu achava que precisava, de repente meu mundo sórdido fazia sentido, um conforto expresso na medida em que eu não tinha mais nada para aprender e que o que eu sabia não valia muito também... era como se eu pudesse mandar o mundo se fuder com uma confortável verdade nos lábios... O instinto arquitetava nossa relação suprimindo qualquer necessidade de necessidade, depois de trepar com minha tigresa eu entrava num vazio nunca sonhado, numa existência que pouco pesava... eu despejava, delicadamente, com o perdão da imagem, a alma junto com o esperma.

Mentiria se dissesse que não notei que Hanna mudava de uns tempos para cá, que solicitava minha presença em sua vida de uma forma quase desesperada, percebia a vontade que tinha de ser vista em lugares públicos comigo, mas recusava seus convites para cinema, festas na casa de amigos e, por último, o casamento de uma prima.

Neguei a princípio essa aproximação pela forma como Duda Bandit se protegia de qualquer tentativa de invasão de um cotidiano confortável e moralmente indecente, mas depois o fiz por Hibari, a mulher que violou as minhas muralhas ocupando minha cidadela sórdida. Não havia espaço para a tigresa porque uma nação bárbara vinda do oriente chegou antes no centro da cidade vencida. Mas não excluí Hanna por completo, havia algo a oferecer dentro dos despojos de guerra, mas ela não quis. Nessa guerra, eu, docemente atacado por fêmeas únicas e lindas, vivi na iminência de ser desmascarado pelas duas, por assim dizer, “mulheres da minha vida”.

Mas agora penso se teria deixado Hanna mergulhar em minha vida, assim como mergulhei em seu corpo, se Hibari não tivesse arrebatado esse espaço antes... penso que sim, que aceitaria ser seu homem, seu macho, aceitaria ter conta conjunta, planejamento de férias em um hotelzinho idiota de Angra, churrasco na casa dos amigos dela, ouvindo uma confluência de ritmos, do samba ao funk, e me esforçaria para que ela se orgulhasse de mim, contaria piadas, jogaria futebol com os filhos dos amigos e as amigas dela diriam que eu seria “um grande pai”, assim... Hanna merecia isso.

Mas agora ela está com outro sujeito, pelo visto deve ser professor de filosofia de alguma faculdade fuleira por aí, é um desses caras de blazer escuro e cara de pastel circulando pela noite, conversando, conversando, conversando infinitamente com as meninas, um nojo... como a minha tigresa caiu nessa? Filosofia existencialista, só pode ser... Eu tenho um Cioran bem lido, acho que escolhi o filósofo errado.



(Mais um trecho de "HH, uma novelinha escorada". É um livrinho que está se impondo dia-a-dia na minha vida... É o penúltimo pedaço que posto aqui. Em breve retorno com os contos do Bandit)

bar do Geraldo

Bar do Geraldo... Hugo faz durante duas horas uma dissertação crítica sobre a literatura irlandesa, começa em Wilde, passa por Joyce e termina em Roddy Doyle... eu olhava o cara, absorvia algumas partes do papo, mas minha grande preocupação era estabelecer quantos peitinhos eu já havia visto na vida, contei dois por mulher, uma vez que são, pelo que pude constatar, distintos entre si... saí aéreo, bêbado de seios, Campari e Ulisses... pelo menos não tive pesadelos, não sonhei que enrabava Wilde e fazia um café para dois de manhã...


(trecho de "HH, uma novelinha escorada")

14.5.07

uma tempestade ameaça...

Uma tempestade ameaça a ilha, ventos hediondos embalam minha solidão esta noite. O transito está congestionado, Monk no CD do carro, o limpador de pára brisa balança escorraçando gotículas suaves, prenúncio do aguaceiro... penso na beleza de estar no trânsito ouvindo bebop em meio ao chuvisco, não deixo de sorrir na composição do quadro... uma hora assim... chego em casa, uma dose de uísque e agora Sérgio Sampaio está cantando suas dores de amor no som da sala, compreendo cada palavra... a chuva parou um pouco, mas sei que retoma vigor para investir mais forte, quer cair sobre meu jardim despetalando minhas rosas, o que seria uma coisa muito triste se eu realmente tivesse um jardim e nele cultivasse coisas assim... Hibari planejou morar numa casa comigo e plantar canteiros de praguinhas silvestres, isso mesmo, fizemos planos de sair à cata delas nos arredores da ilha e nas cidades rurais próximas, me senti patético de novo, “olha, amor, tem uma com florzinhas amarelas”... minha janela é espancada a cada rajada do temporal anunciado... Chegou, acredito, a hora de tomar uma decisão importante na vida: nada de jardim, seja de rosas, seja de pragas. Segundo, tive mais uma certeza: Hibari, à revelia, plantou a porra das pragas foi na minha vida... depois resolvi tomar mais uma decisão... qualquer que fosse a sentença, nada de apelação, ia cumprir a penitência o mais rápido possível, ainda que implicasse na morte meus paradoxos e implicâncias gratuitas... a chuva veio forte, um aguaceiro.


****

Se eu fosse um advogado brilhante, vegetariano e praticante de Wind Surf, puxasse um fuminho discreto e namorasse a Jeska, menina descolada que malha na Vitória Sport, talvez eu fugisse de um cotidiano torpe e noites confusas... Faltou, em termos objetivos, uma educação geradora, fui reprovado em português e matemática, duas vezes, faltou ainda, de minha parte agora, vigor para encarar um futuro de terninho Hugo Boss, camisa Prada, gravata Armani e o papo da Jeska... a preguiça consumiu meus, por assim dizer, "melhores dias"... eu não leio livros técnicos e acho que deveriam proibir Marcos Rey no ensino fundamental, pouparia o leitor deste tipo de confissão constrangedora e absolutamente dispensável... um dia, é uma esperança, o mundo será tomado por gente brilhante e vegetariana que usa Hugo Boss e namora a Jeska... Nesse dia quero que meu cinismo seja substituído pelo ódio, assim posso substituir o sarcasmo por coisas mais úteis, a exemplo das bombas palestinas e fuzis AR15.



(trecho de "HH, uma novelinha escorada"

11.5.07

eu sou um babaca ou sofro...

Eu sou um babaca ou sofro por amor? Uma coisa exclui a outra? Tava demorando a dizer isso. Bem, eu não sei ao certo o que é sofrer por amor, o que pede um questionamento a priori: eu sei mesmo amar?... acho que amei Anna, uma página já exorcizada, mas eu era muito jovem, quando ela partiu eu morri e renasci como Duda Bandit. Anna, que nada tem a ver com Hanna, me lembra hoje um bangalô em Jacaraípe (que foi demolido, mas não tenho nada a ver com isso) e uma arma que enterrei e nunca voltei para buscar. Ela faz um parte de um passado passional e imbecil que foi devidamente assassinado com requintes de crueldade. Não sei se era amor o que sentia... eu, intelectualóide, verde e esquizofrênico, dizia coisas idiotas do tipo “preciso de você porque pouca coisa é sólida... acho que você é livro, eu escrevi você e você me escreve... só isso...”.

Clio, sensatamente às vezes, faz a caravana passar. Eu tinha 19 anos, agora tenho 30. Eu adorava o Werther, agora leio Henry Miller, Bukowski, Mirisola, Bioy, Marcos Rey... Eu chorava muito, debulhava-me em lágrimas, agora secou a fonte... para encurtar a conversa, o certo é que se eu amei no passado aquele não era eu, ou, pelo menos, já não sou mais... se amo Hibari e Hanna esta é a minha primeira vez, sou um debutante. Mas é possível padecer de amor por duas mulheres e ao mesmo tempo ficar melancólico por tantas outras? Quem eu amo na verdade pareceu a grande pergunta a ser feita. Tenho me debruçado neste problema sem grandes avanços... enquanto isso a solidão parece assentar, parece que se torna um fardo mais ameno. Essa é a pior parte.


(trecho de "HH, uma novelinha escorada")

9.5.07

algumas idas e vindas...

Algumas idas e vindas, o rebolado da vida... acho que começo a pegar o macete dessa coisa, embora ainda fique confuso. Eu falo também de sexo. Digo isso lembrando da última trepada antes desta triste estiagem, Hibari viajando e Hanna não querendo me ver nem pintado de amarelo com bolinhas roxas... bem, ao caso: a menina era novinha, coisa de uns 19 anos, foi conquistada mediante negociação, ela mercadejou seus carinhos... a parte mais tensa do acordo comercial foi a liberação da camisinha no felácio, barreira vencida depois de eu bater na mesa e ameaçar abandonar o diálogo. Eu mandava ela percorrer a circunferência da glande com a língua, usar um pouco os dentes, de forma leve, mas presente... e sugar vez em quando girando macio a cabeça de um lado para o outro. Enquanto eu orientava a sensível manobra pensava também no sentido disso tudo, na razão das coisas. Hibari tentou colocar na minha cabeça que tinha algo sagrado no ato sexual, era como um ritual, o sal grosso usado nos cantos do motel na nossa primeira noite tem a ver com isso. Mas eu ainda relutava... A natureza quando escolheu a putaria como forma de procriação teve de tornar tudo mais agradável e criou o prazer que foi devidamente aperfeiçoado e cultuado pela nossa espécie. Trepar é o grande elo entre a modernidade e a antiguidade, perseguindo minhas ninfas é que me sinto perto dos grande comelões do passado. Nada mais universal que o sexo, nada capaz de atrair tanto os povos, para além do bem e do mal (meu deus, estou fazendo discurso, um fascista lascivo? preocupante...). Era Gilberto Freire quem dizia que os portugueses iam gostosamente se misturando com as índias? Acho que era. Como brasileiro nasci de uma grande orgia, o que é por si motivo de um ufanismo idiota, mas presente - já tenho as feministas e a galera do arco-íris contra mim, será que vou atrair também o movimento negro?. Mas, por outra, ainda me questionava do aspecto selvagem disso tudo, ou seja, enquanto eu dava ordens para acelerar e suavizar a língua no meu pau, pensava seriamente no que eu fazia ali e por que eu fazia aquilo... deve ser o que todo grande estudioso vive pensando sem, obviamente, ter uma ninfetinha safada entre as pernas, mesmo que paga - esses caras não têm tempo para tanto. Isso me preocupou, porque estas implicações antropológicas nada tinham a ver com meu cotidianozinho medíocre e devasso. Daí veio a preocupação pela preocupação. O pau ignorava tais imperiosas celeumas e mantinha-se firme no propósito depositado nele, estava duro como pedra, quando os cacetes se preocupam com o curso da história percebe-se que chegou a hora da pílula azul. Eu não premeditei manter meu pinto na ignorância, mas estava feliz de sua obtusidade. Parei de dar ordens à menina, passei a olhar para o quarto, reparar nos móveis, nela... Ela parou, tirou um pentelho da boca e perguntou se tava tudo legal comigo. Abri o jogo pra ela, falei tudo, fiz a genealogia das trepadas, comparei manuais sexuais de várias épocas, enfim, enchi a cabeça da menina peladão e de pau duro. Ela me cortou no meio do palestra, encapou minha pica, subiu em cima da minha barriga, e me disse que era melhor deixar então que os dois se entendessem, pegou a ponta, direcionou na grutinha, e sentou encaixando bem gostoso, macio, depois tapou minha boca e me cavalgou robustamente, eu quase relinchei. Quando acabou ela pousou a cabeça no meu ombro, acendeu um cigarro e me perguntou sobre o que eu estava falando mesmo? Naquela hora juro que eu nem lembrava mais. Mas agora, semanas depois, me ocorre outra coisa, se eu tivesse neste instante que escrevo 150 reais no bolso não estaria nessa fossa toda, tentando colocar pingos nos is (juro que não é plágio, Nilo Oliveira) e suprimindo os pontos finais...


(trecho de "HH, uma novelinha escorada" )

7.5.07

em casa eu pensava

Em casa eu pensava no email recebido, na “ficada” de Hibari. Saí um pouco para esfriar a mente, quando fico assim só tomando vento na cara. Visto calça jeans, camisa escura, jaqueta e com o capacete na mão, desço até a Suzuki Bandit 600 na garagem... quando chego a luz acende e lá está ela, negra, refletindo a claridade... de uns tempos pra cá eu chegava na garagem e pegava a moto de forma automática, mas naquela hora recuperei meu ritual bandit de circular a moto antes, olhar os pneus, verificar os cromados, sentar, contemplar a posição de pilotagem, virar registro de gasolina, ligar a chave, a corrente, apertar o botão e sentir a Bandit aquecendo, ficando mais suave e com ronco contínuo... saio de forma suave aguardando o aquecimento, vou em direção à terceira ponte. Já passam das oito da noite, o trânsito ainda é grande, embora permita ziquezaguear entre os carros, aproveito para explorar as marchas mais lentas da motoca, estico cada uma até a rotação máxima, passo pelas principais avenidas atingindo picos de 100, 110 quilômetros por hora, velocidade elevadíssima para o horário, mas sem constância, só no final das arrancadas... pego a terceira ponte e lá ando mais suave, sentindo o vento contra no vão central... passo reto na entrada da Praia da Costa e vou em direção à Rodovia do Sol, asfalto que fica uma delícia nas noites de lua cheia... depois do perímetro urbano, estrada vazia, começa a emoção, alterno velocidades e mantenho uma média de 170... em alguns lugares atinjo a velocidade de 200 por hora. Entro esterçando nas curvas, o Bandit e a Bandit são uma coisa só... chego à Meaípe, balneário de Guarapari, e depois à própria Guarapari... rodo pela cidade, easy rider. Volto para casa sereno. Ando mais devagar quando chego de novo ao perímetro urbano. Passam das onze. Vila Rubim, a moto quase parando, vejo a entrada da cracolândia na Ilha do Príncipe, pontos de prostituição e venda de drogas perto do mercado, travecos, meninas... passo em frente aos hotéis da vila, fachada de puteiro, lembro da época em que andava por todas estas ruas a pé de madrugada, bons tempos, o Bandit já foi mais durão, nos dois sentidos. Tento imaginar o que acontece lá dentro e no meu devaneio me vejo cinco anos antes em um daqueles quartos, a cama de casal hediondamente nojenta, cômoda, cabideiro, um pequeno espelho na parede e uma pia, é toda mobília do aposento. Estou nu na cama, sento recostado na cabeceira. Uma moça morena se lava na pia, ela molha a mão na torneira e passa pela vagina, pernas.. vira-se e me olha, pergunta se já quero descer. Digo que não. Pergunta se tenho pó ou pedra, digo que não. Me pede dinheiro para comprar, dou uma nota baixa, ela abre a porta, mas esconde sua nudez. Pela fresta chama um cara chamado “gordinho” e entrega a nota. Gordinho demora um pouco, volta, bate na porta, ela atende, ele entrega um papelote. A moça coloca o espelhinho na cama, faz duas carreiras usando um cartão telefônico como ferramenta. Enrola outra nota de dinheiro e aspira uma delas, penso na imagem, rebobino, e vejo por outro ângulo aquela moça morena nua na cama aspirando aquele pó branco que veio de longe. Me oferece a outra carreira, dispenso, ela dá um sorriso e aspira, dessa vez mais suave, em três etapas, tendo o cuidado de juntar tudo de novo com o cartão telefônico. A imagem se dissipa, um carro avança o sinal, por sorte consigo desviar, tem sido assim. Chego em casa, abro minha porta e me sinto vivo de novo, a imagem de Hanna e Hibari volta à mente, mas peço um tempo, tomo um banho longo, bebo uma dose de Jack Daniels e durmo o sono dos justos. Saí do xeque, mas a partida ainda me é desfavorável.


(Trecho de "HH, uma novelinha escorada")

4.5.07

ainda sobre mim e Hibari

Ainda sobre mim e Hibari... nem dava pra ignorar as ameaças lançadas via seus olhinhos castanhos, um misto de animação japonesa, gueixa e brasilidades latentes. Eu engordava a olhos vistos e de acordo com isentas testemunhas nunca tinha sido visto tão risonho. Essas coisinhas tolas tipo andar de mãos dadas, chamar de mãiê, paiê, dentro outras palavras de cunho psicanalítico (Freud e seu charuto me entediam) quase irromperam em minha existência cinza, colorindo as frações de meu ser, tive de ser forte para não sucumbir, mas ela me ameaçava, e avançava dia-a-dia em direção às muralhas de minha solidão... Mas, vejamos, a ameaça... Bem, Hibari cobrava tudo via seus olhinhos acima adjetivados e praguejava, tacitamente, um futuro estéril e melancólico para mim, um castigo contra toda rebeldia esboçada, eu lamentava minhas leituras de Thoreau e me sentia um babaca, um artista circense vacilando na corda bamba dos carinhos de fêmea. Mas, é forçoso reconhecer, na contra mão da revolta tinha a resignação alegre regada a sexo matutino e rosto iluminado, eis a corrupção que me levou à clausura voluntária. Hibari não era uma mulher, era o epicentro de meu desejo inconsciente por uma vida menos sórdida que julgava perdido... nem tinha muito o que fazer, a mim restava apenas a obediência, tudo premiado por uma xoxota quente e certa compaixão feminina. Recebi ainda um título, de que me orgulho, recebido de sua mão com um quimono: danna. Eu não estava propriamente feliz, não deixava de pensar que apenas subia mais alto para a queda livre. Eu me traí, dei a Hibari o que não dei à mulher nenhuma. E o que eu dei era fungível, perdeu-se...



trecho de "HH, uma novelinha escorada".

HH

Preciso usar alguns tópicos para entender como Hibari entrou na minha vida: a) ela andava com graça, vestia um vestido lindo e um chapéu de palha... b) eu estava em um boteco mandando ver na manguaça e não notei que era uma mulher perigosa... c) transei com ela em minha cama na segunda vez, muita tesão e pouca grana para o motel... d) ela não foi embora depois e cismou de fazer macarrão... e) eu gostei... f) tinha descendência oriental e eu estava fascinado com a obra de Yukio Mishima na época... g) despertou em mim uma doçura que eu não tinha há quase uma década...

Podia estender a lista um pouco mais, mas acredito que o exposto seja suficiente. Como se pode ver não premeditei estar com Hibari, quando vi ela já vivia comigo.



(trecho de "HH, uma novelinha escorada")

30.4.07

é possível que duas ou três mulheres...

É possível que duas ou três mulheres tenham me amado. Desconfio que amei três ou quatro. Mas Hibari estava totalmente errada sobre o amor que me devotava. Eu não era o homem que ela dizia amar e, pela primeira vez na vida, não agi de má-fé, ou seja, disse realmente quem eu era, com todo o meu dia torpe e noites confusas. Ela rebatia, via ternura onde eu via porrada, via compaixão onde tinha indiferença, Hibari era louca e eu gostava de mulheres loucas... mas cismou de querer me entender demais, porra, nunca serei desvendado, meu teorema, para usar algo que lhe é peculiar, é por demais obscuro e sujeito a trilhas falsas... eu dizia que sabia o que queria, ela afirmava que sabia do que eu precisava... o abismo entre o que eu queria e o que ela achava que eu precisava era um ponto controverso... eu é que não ia acabar como um moleque de jardim resignado às necessidades inventados por tias mal fodidas, pedagogia é uma ciência do mal... Mas a imagem sexual não é exatamente essa, não pensem que Hibari era mal fodida por mim, foi a merda dos orgasmos múltiplos e uma ótima foda à disposição que me meteram nessa enrascada e as coisas foram longe demais...



(trecho de "HH, uma novelinha escorada")

16.2.07

uma temporada no freezer

Aqui tá frio, mas nem me queixo - por enquanto... tenho um robe quentinho, uma garota versada em alcova e restam duas garrafas de um merlot sul-americano, Sampaio tem cantado pouco e nem abro meu Carlinhos Oliveira mais... O desejo, essa coisinha absurda, terrível... Eu disse que detestava crianças, fingi... depois disse que a gente mete amor onde não devia meter, ou seja, a gente deveria amar a boceta que fode? O pé-na-bunda avizinha-se, posso senti-lo, mas só escrevo depois do golpe (a gente mete amor onde não devia, recorrente isso...). Agora ao assunto, vou ser direto. O que quero neste parágrafo é um relaxamento de prazo, aquele mesmo que pedi em dezembro... um tempinho para ver se vale a pena permutar vida e arte e retornar ao ofício ingrato de juntar as letrinhas despedaçando meu eu escorado... É, é isso mesmo. Quando sentir - de novo - o paladar de abismo invadindo a língua, rasgando o tecido e passeando nas artérias eu volto, retorno às minhas palavrinhas sobre a vertigem bem comportada nessa ilha do cão... não demora não, eu me conheço. Se você veio aqui e não encontrou nada novo, sugiro uma visita aos blogs aí do lado, tem hora que só acho alento nos clássicos ou neles... bem, o alento, essa aspirina espiritual... agora uma última coisa, a título de esclarecimento, quiçá resposta à pergunta fundamental: droga, eu sonhei com uma vida menos sórdida, mas não tanto assim...

24.12.06

Diana

Diana, eu dizia que ia chamar ela só de Diana... Roberta topou e morreu de rir, perguntou se era uma antiga namorada, mas não era e ficou tudo bem, a luz acesa naquele motelzinho de quinta categoria e a mina me dizendo o tempo todo que o importante é que era limpinho, tirou a roupa devagar enquanto falava, ficou de sutiã meia-taça preto e calcinha de algodão branca estampada com ursinhos, ela notou meu olhar abobalhado para a calcinha, colocou um risinho no rostinho iluminado e se desculpou, disse que era uma espécie de renúncia à sensualidade em nome do conforto, eu adorei aquilo e perguntei por que eu não tinha visto ela por lá ainda, respondeu que era meio invisível de vez em quando, mas que hoje ela queria ser vista por mim, que conhecia minha moto e que meu nome já começava a circular entre as meninas de lá...

Depois deitou-se do meu lado, cobrou adiantado e disse que eu ficava bem de preto, falava e fazia cafuné na minha barba, eu quase dormi, mas levantei, tirei a grana da carteira, paguei e fui ao banheiro tomar uma ducha, o chuveiro ligado e ela na porta perguntando se podia entrar, podia, lógico, veio com a toalha e um robe no braço, eu tinha esquecido, me deu um sabonetinho, sentou no vaso e ficou me olhando, não queria entrar e molhar o cabelo, reclamou que tinha queimado o solado da sandália no escapamento da moto, eu disse que ia dar outra pra ela que sorriu de novo agradecida, presente de Natal com um cartãozinho e tudo, sou capaz de coisas assim.

Ela perguntou como ia ser o Natal na minha casa e sem esperar pela resposta disse que ia pra casa da mãe em Minas Gerais, outra de Minas, pensei, e respondi quando ela parou de falar que eu não era muito ligado em Natal não, nenhuma crítica batida ao consumismo desenfreado, mas àquelas panaquicezinhas estilo árvore e Papai Noel. Ela protestou, quis saber o que eu tinha contra, eu não tinha lá motivos muito fortes, mas tentei esboçar alguma coisa, disse que árvore de Natal me lembrava o marido da rainha Vitória, um otário chamado Albert que tudo que fez em quarenta anos de vida foi popularizar o uso de árvores de Natal pela Europa, depois falei que Papai Noel tinha sido criado por um chargista alemão radicado nos Estados Unidos e depois plagiado e difundido pela Coca-Cola em campanhas publicitárias. Assim, nessa época do ano, eu sempre imaginava o príncipe Albert embaixo de um pinheirinho enfeitado tomando Coca-Cola e dando um arroto descomunal, tudo devidamente aplaudido pela rainha. Aristocracia é um negócio chato pra caralho, além de patético, temos hoje o Charles, descendente do Albert, que me dá razão.

Ela não concordou comigo, disse que as árvores lembravam a infância dela e outras coisas bonitas, eu queria foder e deixei as polêmicas natalinas de lado. Saí do banho e prometi procurar um analista, ela disse que eu era doido mesmo e afirmou com um beijo no meu ombro que adorava gente doida.

Ela me vestiu no robe e me jogou na cama, oba, mais uma que sabe o que quer, eu me deixei levar, ela entrou com uma chupada maravilhosa, coisa de profissional, eu olhava aquilo e pensava que era bacana saber quanto custam coisas assim, pois as namoradas costumam mandar contas lacradas cheias de exigências absurdas. Mas tive uma recaída recorrente, falei que tinha inveja do namorado dela por receber uma língua daquelas sem a camisinha, ela riu sem tirar o pau da boca, eu vi poesia nisto. Eu vejo poesia sempre em coisas assim, por isso prescindo de ler a maioria dos poetas.

O resto foi convencional, um belo rebolado, as gemidas falsas, o gozo canastrão e um sujeito peludo embaixo pensando em fumar um cigarro e fingindo acreditar em tudo, cotidiano... ela saiu de cima, acendeu o cigarro e fumamos juntos, ela deitada de costas com a cabeça apoiada no meu peito, a gente se via do espelho no teto, era bacana o contraste de minha pele branca com a sua carne morena, eu gostei do rosto dela, tinha graça e ao mesmo tempo dignidade. Eu disse isso e ela acariciou minha mão, falou depois que tava adorando ficar ali comigo, eu me calei... o ano morria, “últimos suspiros”, ela disse isso. Eu falei que 2006 foi um ano de merda, eu tinha mergulhado mais fundo no poço seco, já tava cavando a terra enquanto as unhas sangravam, mas falei isso rindo, um sintoma da gravidade das coisas. Ela se virou para mim e me deu um selo na boca, falou que ia fazer curativos nas minhas unhas e que tinha um diploma técnico de enfermagem, eu prometi ligar se precisasse.

Levantamos, nos vestimos, pilotei a moto pela orla da praia devagar, ela grudada em mim, calados, as luzes natalinas na fachada dos prédios refletiam no painel e em mim, o negrume da noite ficava menos nítido, as luzes piscavam. Eu me sentia bem no escuro e patético na luz, deixei Diana em uma praça perto do que ela disse ser a casa dela, me deu um abraço e outro selo, me fez gravar o telefone e me cobrou a sandália. Eu tirei o dinheiro para pagar o calçado, mas ela disse que preferia o presente, com cartão e tudo, eu sabia onde levar.

Fui embora lento, pensando nas luzes, cheguei em casa, abri uma Coca e enquanto bebia lembrei que não tinha perguntado o número do pé dela. Não ia ter outro jeito, eu ia ter que ligar e perguntar.

11.12.06

O grande Lacerda

Lacerda é carioca... mas não é aquele não. Lacerda é polícia. Eu conheço pouco o homem, mas pelo que já li de suas aventuras sei que ele anda pelas madrugadas com cinco olhos, quatro ouvidos e uma ponto40 na cintura. O Bandit aqui tem em comum com o sujeito um cotidiano turbulento, a proximidade do crime e a vontade de extrair poesia desse mundinho decadente. Lacerda consegue.

O cara logo vai estar disponível por aí exibindo sua existência no romance policial A Arte de Odiar. E tem mais, o Bandit aqui ganhou dedicatória numa aventura dele que está no blog do Júlio Cesar Corrêa. Não espere até amanhã para ir lá.
  • Clica aqui, baby. Você vai gostar.
  • 8.12.06

    Meu eu escorado


    Bandit sozinho em casa, a solidão do apartamento... a solidão é uma poltrona confortável de cores sombrias... Abri um nacional mediano, gelo de forminha, e encontrei duas latas de soda na geladeira...

    Sem música, sem vídeo, só as paredes na penumbra do abajur... não, eu não vou descambar pras sacanagens hoje, não estou a fim de conceder nada pra literatura agora, nem vou contar uma história, desiste agora se você espera isso... não confie no que disseram sobre minhas habilidades... talento?

    É. Dizem por aí que sou um cara talentoso, se defendesse Raskolnikov do duplo homicídio ele pegaria no máximo 13,6 anos de reclusão e deixaria de ir para a Sibéria. Mas o que faço com meu talento? Sorry, mamãe, eu uso pra comer putinhas de graça, mas nem sempre, adoro pagar pelo sexo...

    Coerência... dez mil anos de uma civilização capenga, milhares de universo caótico e o tipinho de gente que anda por aí... Eu acho que evoluímos até demais, considerando o tipinho de gente que anda por aí... o mundo é abastado em coerência.

    (parêntesis: gravata deve ter alguma coisa a ver com coleira, deve fazer parte de alguma sacanagem de um estilista molieriano passando um pente no rabo da burguesada fingindo um afago)

    Estou completando 29 anos hoje e tenho cartas na manga, um olho no crupiê, outro no espelho: vejo meu rosto sincero, é minha melhor jogada... a pior desgraça que pode acontecer a um vampiro é ter rosto de canalha, meu vampirismo se manifesta entre as bolas e a glande do pênis, mantenho assim um sorriso benévolo. Drácula no século XXI estaria fodido, seria gerente de boca, nem chegaria ao colarinho branco, talvez até virasse o excêntrico motorista da tower do banco de sangue.

    Um cara calmo demais, eu sou. Acontece às vezes de ser paciência, noutras é indiferença mesmo... tento adivinhar o que vão dizer antes de terminarem a frase, e preparo meu ataque durante o abrir e fechar de lábios de quem me fala, só bato se realmente valer a pena. Se o cara me surpreende eu uso improvisações aprendidas em exercícios de artes cênicas, fui um ator medíocre de um teatro infame... o contrário também cai bem.

    Pesadelos... tenho pesadelos, num deles sou preso pelos militares, solto pela anistia, e depois preso pelos petistas que chegaram ao governo – Sade entende dessas coisas. Na minha cela Ernesto Che Guevara está vivo e pergunta o tempo todo: quantos somos? Brizola quer saber: vivos ou mortos? Mortos, digo olhando pro Guevara que baixa a cabeça e resmunga creo que sea el fin de la revolución. Todo mundo que nasceu em 1977 deve sonhar coisas parecidas...

    Eu dormi no fora Collor e meu mundo é a planície... tenho a profundidade de um Sátiro... Adoro cafunés pagos, releituras de livros e vento na cara... Encontrei Saulo ontem num sebo da 23 de maio e o cara folheava Piotr Kropotkin com paixão, eu também fazia isso em 1999.

    Sátiro... quando lembro de revolução penso em sexo... Ela, nua, tatuada em henna, me pergunta se o correto é “pele dos indianos” ou “peles de indianos”?... Recomendo o singular, embora num lugar em que se admitam castas certamente pode-se usar sem medo o plural para pele. Esse negócio de pele é sério e eu venho tentando salvar a minha já há algum tempo.

    É meu aniversário, já falei. Ganhei o dia de folga, está nublado, mas fiz o que nunca faço, passei a tarde de hoje na praia, óculos escuros e boné, sentado no quiosque olhando o mar sem cor... pouca gente na areia, fiquei atento a duas mulheres sentadas vigiando várias crianças que corriam sorrindo, brincavam de pique enquanto eu dava goles macios na minha cerveja. Uma menina tropeçou e caiu chorando e todos foram embora depois. Eu tava me divertindo. Pensei num palavrão. Adoro palavrões... Nem pra falar hoje em dia, só para lembrar, colecionar... tenho cada pérola guardada... tive uma mina que achava esse negócio de palavrão barato, gratuito... porra, pra mim foi caro, no passado paguei com sangue os palavrão usados...

    (Outro sonho estranho: eu com um chapéu de palha cantando sambas de Moreira da Silva para uma platéia de coroas ensandecidas num cabaré decadente... quero sugar essa força do velho Moringueira; há tanto tempo tentando um texto forte, vibrante, e cedo a pieguices sem tamanho, amenidades tolas... é difícil manter minha literadura...)

    Minha literadura: eu bebo nos botecos da Ilha da Conceição de madrugada, ao lado de traficantes, ladrões, damas e santos... mas compro chocolates nas Lojas Americanas... depois vou procurar livros em promoção, eles ficam perto da seção de lingerie... Já achei Mallarmé um dia, mas agora só encontro a Matemática dos Aniversários e livros ensinando a trepar sem a graça e o brilho dos antepassados, dos Vatsayana, dos al-Nafzawi... a cultura de massas enxuga muita coisa, mas o que ela mais seca é a alma e o sexo... a gente trepa muito e sente pouco, maus orgasmos cotidianos e necessários, a alma pela metade.

    (mas de tempos em tempos acontece o gozo que redime, me abastece em sua arena de luta e paixão...)

    Bebo ainda, mas é absolutamente necessário que eu mantenha-me lúcido... eu bebo pra ver melhor, não para fugir.. um sadomasoquismo social, é por aí... Já criaram o darwinismo social e agora estão usando Nietzshe como auto ajuda...

    Eu prefiro essa de sadomasoquismo social, o caminho até aqui foi fodido, mas antes de me vangloriar por ter escapado, temo pelo resto de estrada e a quantidade de munição que sobrou: pipoquei metade das balas até os 25 anos. Depois daí passei a dar tiros seletivos, tenho chumbo ainda, mas isso cessa sem mandar recado, principalmente na hora de cruzar o redemoinho.

    Vivo e sinto presente a bala guardada com meu nome gravado, todo dia... munição do caralho que não masca, pólvora negra, clássica: 75% de salitre, 15% de carvão e 10% de enxofre...

    E é esse cheiro de morte que anuncia o crepúsculo avisando que o sol não vem trabalhar hoje, sumiu essa semana, o sacana. As meninas estão perdendo as marquinhas de biquíni nas ancas e isso é imperdoável... imperdoável.








    Ilha de Vitória, 08 de dezembro de 2007.

    24.11.06

    Duda Bandit na tarde dos pandas

    I
    "descobri que é muito perigoso aplicar à conduta idéias literárias"
    (adolfo bioy casares)

    Eu abro a guarda ainda... depois de tanta porrada eu ainda abro. A gente sente falta desse gosto de sangue, fica mordendo a mucosa da boca para sentir o sabor de carne viva... autofagia, o canibalismo possível.


    Mas ela não quis me bater... db, o vira-latas da estepe, pensou que não ia ligar, hoje não ligo... Há muito deixei de considerar opiniões desfavoráveis à minha pessoa, quem tem ego apaixonado tem passe livre... dizem que sou um machista convicto, mas sou um machistazinho adorável... abro portas, mando flores, canto Nelson Gonçalves no ouvidinho... e adoro pagar contas, porra, qual o problema nisso tudo? O que me salva é meu orgulho peculiar, regionalizado. De onde venho, coronelismo tardio, as pessoas negociavam olhando pra baixo e não assinavam papel, os vícios eram sanados na bala... esse olhar pra baixo é que é foda, desde já aviso: orgulho é olhar pra baixo e calcular o tamanho da queda.

    Ela lia meus textos, mandava e-mails desancando o meu machismo e elogiando a minha vitalidade e impulsividade... eu ficava todo prosa. Pegou meu msn e duas tecladas depois nos encontramos em um bar estranho de Jardim da Penha, juro que sempre passei por aquela rua e não tinha reparado nele. Voltei depois, inúmeras vezes, na esperança sempre frustrada de encontrá-la.

    A gente falava sobre o mundo, as coisas, literatura, trabalho. Quando o papo caminhava em direção a nós mesmos tudo ficava subtendido nas entrelinhas. Até hoje nem imagino onde ela morava ou que veio fazer na minha vida. Pelo jeito de escrever, econômico, mas usando palavras amplificadas, eu deduzi que se tratava de uma escritora, possivelmente poeta (eles se entregam fácil). E era mesmo. Como ninguém bate ponto fazendo poesia, Wanusa era free-lance de várias ONGs nas quais ela militava ou era simpatizante, dúzias de organizações ecológicas ou feministas pelo planeta. A idade eu chutei pela aparência e pela bagagem cultural, entre 27 e 30 anos. Usava óculos de aros grossos e pouco baton. Sempre começava um papo como se fosse abrir um seminário importante para tratar de estratégias para proteção dos pandas da China, bicho enigmático em sua vida. Coisa mais sem graça, eu pensava, proteger um bicho que vai sumir do planeta por falta de apetite sexual. Mandar uns coelhinhos pra lá em um programa de intercambio com os ursos me pareceu um caminho viável. Ela riu, nesse dia riu.

    Era vegetariana e no nosso último encontro passou a criticar meu apetite por carne. Eu disse que um leão não teria remorsos em me devorar num almoço de domingo. Ela falou de necessidade, cadeia alimentar, crueldade, ausência de maldade, etc... Eu disse que concordava em parte, crueldade existia sempre, a única diferença é o sarcasmo, pois a gente mata o bicho e depois desenha a espécie feliz na embalagem sugerindo o consumo... os olhinhos castanhos dela sorriram, acho que maquinaram um novo postulado para a causa dos carnívoros éticos.

    Mas nem tudo eram questões ambientais e feministas. Logo no primeiro encontro o vestidinho mal intencionado, relativamente curto, justo na cintura, largo e esvoaçante nas coxas. Um laço prendia as alças no pescoço, era só puxar uma das pontas... e vi que ela estava desconfortável, que aquilo não era o tipo de roupa que costumava usar. Uma concessão em nome do Bandit? Adorei. Juro que pensei até em armação, tenho cultivado inimizades no meio acadêmico, na galera GLS e no mundo feminista. A possibilidade de trote não era paranóia. Essa galera usa métodos da máfia chinesa aperfeiçoados pela camorra. Ficou até mais excitante depois disso, sentia-me um cara digno da cama de Mata Hari... um privilegiado, eu era singular, filho dileto do outono: Wanusa, um presente da estação, me olhava com óculos de aros grossos e coxas morenas.

    Revelei Wanusa como se despetalasse uma rosa... mas primeiro suprimi os espinhos, humanizei-me em direção a uma paz que só eu podia me dar, embora lançasse mão de amenidades presentes em seu sorriso, seu caráter e o som de suas palavras... penso que quase entrei em transe escutando ela falar sobre os guaxinins e seus hábitos extravagantes, nas misteriosas árvores que crescem na Amazônia e no woman power, um mundo sendo harmonizado pela feminilização das relações...

    Mas quando entro em transe um olho fica aberto, concordava com tudo me utilizando de um sorriso tolerante que só eu sei fazer, elogiei os guaxinins e seus hábitos de higiene, citei uma árvore amazônica que ela até então desconhecia, e falei de Heliogabalo, o anarquista coroado que pirou os romanos colocando mulheres no senado, versão de Antonin Artaud.

    Wanusa iluminou-se em um sorriso aprendido na lide com religiões orientais. Descobriu, enfim, um coração batendo no peito de Duda Bandit... eu não estava pra brincadeira aquele dia mesmo, se fosse preciso eu diria até que distribuía rosas no trabalho em oito de março – as flores acompanhadas de um pequeno panfleto de minha autoria explicando a origem da heróica data.

    A tarde no motel foi especial, eu quis fazer com carinho, devagar... ela, apesar de preferir as trepadas selvagens (fazia sentido), topou e sincronizamos nossos corpos como se transássemos em um imenso bote king size solto no mar calmo... o ar preguiçoso passeando pelas narinas e se misturando aos gemidos e som da música mais psicodélica dos mutantes.

    Pensei de repente no que minha vida poderia ter sido... no que poderia ser. É fácil apagar um passado, reescrever. Os historiadores fazem isso o tempo todo, cada fato é recontado em cada tempo, de acordo com interesses próprios de quem reconta nessa época... e eu? Por que não poderia também reinventar um passado?

    Mas não ia reescrever nada nesse dia, trouxe minha mente de volta ao corpo usado por e para Wanusa, deixei de lado meu passadozinho imbecil e irrisório. Eu estava me divertindo e isso é tão raro que tenho que ir até o fim, preciso gastar todas as possibilidades de bem estar, quiçá felicidade. A entressafra desta cultura é longa e cheia de intempéries.


    II


    Wanusa sumiu uma semana. Eu não tinha seu telefone e por isso mandava e-mails que foram cruelmente ignorados. Ligou uma tarde, perguntou se eu queria vê-la... pode ser, respondi abafando na garganta algo como: só se for agora, mina. O mesmo bar em Jardim da Penha. Saímos depois, mas eu já não conseguia fingir tanto interesse na pesca predatória de baleias, numa associação para gatos desamparados e uma exposição fotográfica sobre a mulher trabalhadora...

    Wanusa percebeu isso, mas ignorou as possibilidades de meu querer, não vislumbrou o infinito de meu desejo. Deu vontade de queimar meu escritos, livrar-me dos preconceitinhos babacas, enfim, tava disposto a sugar um espírito de barata, não ser nem contra nem a favor de nada, fugir de tudo quanto é tipo de polêmica, seria capaz, talvez, de me assassinar para tê-la em meus braços. Eu estava dando silêncio e amor em troca de sua alma e corpo. O sexo foi bom nesse dia, aconteceu em minha cama. Levei Wanusa para meu mundo. Um erro.


    III


    Na terceira vez em que nos encontramos fizemos um sexo lascado, ruim... falamos (ela falava) depois sobre os direitos das mulheres na China, me recomendou o novo livro de Anchee Min. Disse também que ia receber o Tao. China, não é lá que vivem os Pandas? Foi tudo que perguntei.

    Dormimos e amanheci deitado de lado, sentindo um rosto macio e cabelos colados em minhas costas... evitei até respirar para não perder essa ternura. Devo ter ficado muito tempo assim, minha cabeça deu muitas voltas em torno de coisas que não consigo esquecer... estava sereno apesar das lembranças, contei nos dedos as mulheres que me trouxeram esta serenidade e precisei de menos de uma mão nessa matemática insensata. Adormeci de novo e Wanusa foi embora, sem me acordar. Interfonei pro porteiro, um pouco pra saber que horas ela desceu, um pouco, quem sabe, pra ter certeza de sua existência... o aroma de mulher amanhecida, os vestígios de sexo na cama, a glande em leve ardência e até os encontros anteriores podiam ser produtos do devaneio de qualquer esquizofrênico de primeiro grau, um louco estagiário... bom, uma ligação para a portaria também.


    IV


    Na última vez foi isso que já falei, ela criticou meu apetite por carne. Estávamos no meu apartamento e ela começou a ler os títulos dos livros na estante, parou, retirou o Mulheres, de Bukowski, folheou e guardou; abriu um François Truffaut, O homem que amava mulheres, versão em livro do filme. Pegou um Shopenhauer, A vontade de amar, caiu justo onde o velho dizia que “a injustiça é o defeito capital da mulher”. Aí foi demais... Perguntou que graça eu via naqueles livros (?). A mesma que vejo em um bife mal passado, respondi.

    Machista, ela atacou. Concordei, mas destaquei que eu era um machistazinho adorável, tentei abraçar, agarrei sua cintura, mas ela me repeliu e negou... negava, não, eu não era um machistazinho adorável, era só machista... Tentei perverter o conceito, desanquei a trajetória de Louise Michel na comuna, fiz apologia ao fim do sutiã, afirmando que adorava peitinhos libertos, e com isso faturei em cima de uma das páginas mais comoventes da briga da mulherada em duzentos anos. Mas não estava satisfeito ainda, eu precisava de um gran finale, disse que tinha que ter existido Chiquinha Gonzaga, Leila Dinis, Pagu e Rita Lee para hoje as meninas rebolarem no baile funk rindo gostosamente ao serem chamadas de cachorra... foi letal. Ela preparou a mão, eu abri a guarda... e nada. Foi embora, bateu foi a porta. Maldita, ela sabia que seria pior assim... eu adorava Louise Michel, droga. No mais, na estante também tinha Márcia Denser, Hilda Hilst, Ana Cristina Cesar... até Safo tinha, porra. Sei lá, acho que não calculei o tamanho da queda e agora no chão eu procurava o orgulho que perdi na hora em que tirei os olhos dele.

    Eu mandei uma mensagem offline... uma semana e nada. Abria o msn e ficava feito idiota esperando ela entrar. Deve ter me bloqueado, a infeliz. Saía desolado da frente do computador procurando bebida e o seu sorriso engajado nas bocas de garçonetes. Deixei de freqüentar até as putinhas por um tempo.

    E foi isso. Wanusa sumiu. Deve ter recebido o Tao e caiu fora, tá lá na China pixando muros contra a opressão feminina e a favor dos pandas, por que não? Os pandas, de uma coisa serviu tudo isso: acho que hoje compreendo melhor os pandas e suas idiossincrasias.



    13.11.06

    Não pare na pista, Bandit

    “Da vez primeira em que me assassinaram
    Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...”
    (M. Quintana)


    Zumbi... vampiro? Dá no mesmo. A perda tem dessas coisas, via de mão dupla. Trás dor e depois liberdade. A gente trafega nessa via sinistra, faz opções. Seja numa praia de madrugada, o frio cortando a alma e você não sente; seja na estrada, um caminho pavimentado de escolhas e renúncias. Eu tinha vinte e dois anos.

    Procurava nas estantes da livraria algo que dissesse o que eu sentia. Revirando a seção de literatura estrangeira peguei A Metamorfose, de Kafka, e uma voz suave atrás de mim perguntou se “Esse livro é bom?”. Respondi que gostava muito dele, era a história de um cara que acorda um dia e percebe que se transformou em um inseto. Ela falou: “Acontece todos os dias, o mundo tá meio louco, né?” – rimos, achei a menina muito espirituosa em dizer aquilo. Ruas vazias, tarde nublada de sábado, saímos dali para tomar café expresso. A luz da lanchonete refletia em seus cabelos avermelhados. Fogo.

    Fizemos promessas, juramos amor eterno, essas coisas. Quando dei pela situação sua mala estava na minha porta, ela sorria e pedia "coloca no quarto, mô." A vida passou a rolar assim, eu trabalhava e ela meditava no tapete da sala .

    Três meses depois mudamos de minha quitinete no centro para um modesto bangalô em frente à praia de Jacaraípe, lá no final da orla. Fui contra no início, não queria pegar dois ônibus e ficar em pé uma hora e meia pra chegar ao trabalho, mas ela me convenceu durante o banho.

    Chegava cansado e encontrava Anna na varanda com aqueles vestidos de cores suaves, cheiro de sabonete, me esperando; Corria, abraçava e dizia no meu ouvido coisas adoráveis. Eu era mesmo um babaca adorável.

    Anna tinha mania de ficar pelada em casa usando minhas camisas sociais. Era sempre a camisa preferida entre as preferidas, aberta, mostrando os seios e o púbis encarnado quando andava. Tinha um talento sobrenatural para descobrir a que eu pensava em vestir no dia seguinte. Usava e escondia. Quando eu ia sair não encontrava mais. Brigava, mas ela só me olhava. Mandava escolher todas as minhas camisas que gostasse e jogar tudo no armário dela. Ao menos ia parar de me desfalcar na hora em que mais precisava. Ela sorria e me abraçava, roçava o nariz na minha barba. Depois ficava caladinha no meu colo. Eu mandava todas as camisas favoritas do mundo à merda.

    Final de semana a gente ficava na cama até tarde, café na bandeja e Caetano Veloso. Anna dizia “Vou ser sua pra sempre.” Eu advertia que mentir era feio. Uma vez pegou uma bisnaga de queijo cremoso e rabiscou no seio direito: L U I S. Tem um monte de nome assim por aí, disse. Então tentou escrever E D U A R D O no outro, mas como o nome era comprido se contentou com D U D A, contornando o mamilo. Desse dia em diante nunca mais me chamou de Luis Eduardo ou Luis, sempre de Duda. Fui batizado pela segunda vez, dessa vez com queijo cremoso e bico de seio.

    Eu trabalhava e Anna lia os livros, vivia perguntando sobre escritores, filosofia. No dia em que resolvemos começar um jardim pediu “Quero aquela flor da Ofélia, dá para conseguir?”. Expliquei que o nenúfar era uma flor aquática, precisava de um lago. “Ah! Que pena.” – resignou-se com aquele rostinho de menina.

    Anna lia os livros e mudava. Continuou adolescente e jovial com Shakespeare, tornou-se impulsiva lendo Goethe, afetada em Oscar Wilde. Com Camus tomou gosto por longas caminhadas na praia e já não me esperava no final da tarde.

    Uma galera freak começou a fazer ponto na praia, em frente ao bangalô. Anna fumava um baseado com eles vez em quando, e falava, falava... Eu via da varanda e tinha receio de me aproximar. Na única vez em que o fiz ela se calou. Um cabeludo com cara de fome mantinha a conversa, falava de anarco-individualismo, autonomia do indivíduo, Van Gogh e quadrinhos. O cara puxando fumo na praia com o dinheiro da mãe pensionista do Estado e falando de autonomia do indivíduo... aquilo me enojava. Anarquismo individualista sem conhecer Max Stirner, autonomia do indivíduo sem Emma Goldman, Van Gogh sem Artaud.... um dia joguei tudo na cara de Anna, ela chorava e me acusava de arrogante, presunçoso... deixei ela falar tudo, respirei, encarei firme e contei que devia minha vida ao orgulho, sem ele teria sucumbido a um cotidiano patético e insignificante, uma vidinha corrompida, feita de afagos mútuos. O orgulho havia me livrado das expressões "foda", "maneiro" e "demais" na saída do Metrópolis depois de um filme de Bergman. Eu não tinha me traído, ainda não. Ela quis saber do meu afeto, do meu querer... Anna, eu dizia, preciso de você porque pouca coisa é sólida... acho que você é livro, eu escrevi você e você me escreve... só isso... Ela pegou a minha mão e colocou embaixo do vestido, dentro da calcinha, segurou firme lá e perguntou se aquilo era página... eu tentei beijá-la, mas ela não abriu a boca, joguei seu corpo em cima da mesa e penetrei a gruta árida. Anna me olhava, me olhou até o fim, e eu podia ver nos seus olhos o reflexo de um homem no lago... eu mesmo.

    Nosso afastamento foi crescendo. Tentava me reaproximar dela, mas, porra, quanto mais eu tentava pior ficava. Anna começou a sair sem rumo, sumia dois dias e depois voltava como se tivesse ido à padaria. Pirei, comprei um revólver 38 e ameaçava atrocidades, não ia mais pro escritório, mandei meu chefe tomar no rabo. Foi minha primeira demissão. Ela pouco se importava com tudo, chego mesmo a dizer que se divertia com meu circo de horrores.

    Chegou o dia em que esperei semanas e nada. Ela não voltou. Não ligou, nem um recado. Mas ainda tinha esperanças. Aguardava sempre na varanda com a arma carregada, até tarde. Engatilhava e desengatilhava. Estava tão perdido que até a possibilidade do suicídio pareceu um caminho intrincado, não seria capaz de encontrar a estrada da morte sozinho, mesmo olhando um mapa rodoviário.

    Depois da vigília eu andava na praia de madrugada com o revólver na mão, voltava ao amanhecer ou dormia na areia. O ar faltava, o inferno fatalmente fecharia as portas e minha temporada se faria permanente nesse dia.

    A redenção veio de rajada. O vento derrubou as peças do tabuleiro. Saí do Xeque por acaso e a partida recomeçou lenta, sem a droga do cronômetro. Senti frio de novo e o dia já despontava no horizonte, um riscado de fogo na linha do oceano.

    Caminhei procurando um lugar para enterrar a arma, tinha me custado uma grana e eu poderia precisar dela um dia. Enterrei ao lado de uma castanheira, marquei o local e voltei pra casa, tinha que devolver o imóvel, o dono queria de volta. Comi um ovo cozido, contei quanto dinheiro me restava, enfiei no bolso, arrumei minha mochila e fui embora. Na saída virei pro bangalô e dei uma banana. Era agosto e segui pelas ruas vazias em direção ao ponto de ônibus. O vento zunia no meu ouvido e me lembrava uma verdade que martelava minha cabeça: Eu agora era imortal.

    8.11.06

    Duda Bandit, o hematófago

    Tem gente que coleciona fetos... outros fazem yoga. Alguns, de tão azarados, tentam suicídio, tentam... Bandit gosta de motos japonesas, lê L.F. Celline e faz farras com putinhas... mas essa noite não. Precisa de caça... nada de comércio, minas à escolha no catálogo...

    Seis andares em cima da rua sete... Bandit na janela do apartamento olha quem passa... as pernas parecem tão longas no passo... vontade de descer, entrar no Bimbo e tomar uma cerveja no balcão, manjar os tipos... quem sabe aquela moça? É terça-feira. A rua logo vai ficar vazia, é preciso ir depressa.

    Não. Uma pilha de processos na mesa, tanto papo para conseguir trabalhar em casa e furar logo na segunda semana?

    Os habitantes da noite... fauna escassa em Vitória. Bandit olha a pilha de papéis, os códigos do lado, doutrinas – esses penalistas certamente não trepavam – pensa com convicção. Senta, digita algumas palavras... pára. Recosta, bota as mãos na nuca e lembra de quando as coisas pareciam mais simples, o que deu errado, droga? O telefone toca. Atende e uma voz feminina, rouca, provavelmente bêbada: Rafael?

    – Não, querida, você errou o telefone do anjo, mas se você quiser....

    Ouve o pipipipipi... imóvel e patético por cinco segundos e volta à janela. Os guindastes do porto vistos por uma fresta entre dois prédios, imaginou-se levantado por um deles e depois, numa falha operacional imperdoável, sendo despejado no mar. O burburinho das vozes na rua, seis andares abaixo, faziam a solidão começar a doer. Vampiros são assim, fazem tudo por solidão, só pra desejar companhia depois...

    Foi até a estante e entre empoeirados livros de Marx e Hanna Arend achou os poemas de cárcere do Ho Chi Minh, pensou em jogar um deles na petição: escolheu aquele em que Ho Chi Minh caminha pelas montanhas e os tigres não o incomodam, mas na planície é preso por outro homem... não fazia muito sentido na peça processual, mas, porra, pouca coisa faz sentido nos tribunais.

    O tédio comia pelas bordas... a imagem de cada móvel na sala trazia desconforto, teve nostalgia de amor passado. Sentiu na cabeça os cafunés de Leidinha, ouviu a voz de Roberta, lembrou da indiferença de Dolores e se divertiu com o sarcasmo de Reyna... Não veio à mente nenhuma trepada, o que evidenciava que mais um pouco de tempo ali sozinho estaria fatalmente fodido, melancólico e fodido.

    Todas as mulheres quando foram embora disseram coisas semelhantes, o que ele mais ouviu foi “nunca mais, cara”. Algumas não disseram nada, as melhores. Teve uma que pinchou palavrões na parede... foi lindo.

    O tédio.... pode saber, boto o dedo na cara de qualquer padre, teólogo, filósofo, sacana, aproveitador, bispo da Universal, etc... digo que deus e o diabo vão manter o jogo equilibrado eternamente, com ligeira vantagem para o inferno... Porra, o tédio é o contraponto, o inimigo. No fundo o capeta é um aliado do divino na luta contra um mundo plano, enfastiado... Bandit me ensinou. Por isso ele não se encrencava com nenhuma religião, desde que ela ficasse na dela e o deixasse na dele. Pronto. Descer ou não descer à rua deixou de ser uma questão pessoal para virar um questionamento filosófico sobre a natureza do divino... Caralho! O único Divino com quem Bandit simpatizava era um mulato cheio de ginga que cumpria um restinho de pena no Instituto de Readaptação Social – IRS, na Glória.

    Tédio, trabalho, tédio... Perguntou-se de repente: O que diria Henry Miller nessa situação?... nada, sairia simplesmente em busca de boceta.

    Pouco depois estava no elevador... saiu, sentiu o ar da noite, úmido pela chuvisco que cessava.. respirou fundo... sentiu falta de gente, mas só para ver... andou, Ceará fechado, Nakano vazio... uma mesa com conhecidos, todos homens... esquivou-se... detestava a companhia masculina.... Suportava apenas um, o Gafanhoto, porque tinha a capacidade de sonhar sem ser babão.

    Bimbo. Meio cheio, meio vazio... procurou por Nina, a garçonete dos bons conselhos... de folga... homens, apenas homens no boteco. Resta a cerveja e pescar o papo alheio... futebol, trabalho, reformas, política... foi na Jukebox e procurou Rauzito... o som começa e muita gente reclama da quebra da hegemonia de Bruno & Marrone no espaço. Dá de ombros, termina a cerveja, a música, paga a conta e volta pra rua. Pensa... pegar a moto e sair está fora de planos, chuva fina e indecisa desde o entardecer... vai andando, tentando descobrir coisas novas na arquitetura da cidade. Inútil. Bandit é capaz de descrever todos os casarões antigos, monumentos, praças... cinco anos por essas ruas passam rápido, deixam fotografias na memória, algumas serenas, outras gravadas com muita dor.

    Os bares do porto estão fechados, já é tarde. Entra na Princesa Isabel, putinhas concentradas, recebe propostas de sexo em promoção: hoje não, minha linda! Não era desse jeito que Bandit queria mergulhar na carne essa noite. Nem teria saído de casa se assim fosse, chamaria uma putinha universitária delivery... hoje não. Prossegue e chega no parque, um bar aberto ainda... pequeno. Gente em torno do balcão circular, de modo que os clientes se encaram como uma mesa redonda, um seminário, parecendo essas frescuras de universidade. Senta no meio. Conhaque. Vários homens, duas bichas, uma coroa meio passada... lembrava Gertrude Stein retratada por Picasso, porém, vestia cores mais alegres. Como é difícil cobiçar nesta cidade, pensou. Fim de madrugada, não a desprezaria como possível vítima, aceitaria um jantar menos farto – tudo que quer é aliviar esse troço que dá no peito, uma agonia que dali parte para o pau, sobe à cabeça... contrai as mãos... um corpo para dissolver-se e remontar-se em novas bases... renovar-se a cada trepada... sexo... daí a palavra comer boceta, a cultura popular nunca é tola, comer, alimentar-se... devorar... fazer-se daquela matéria... dali saímos... às origens.... Drácula recupera suas forças na Romênia...

    Gertrude, a do boteco, com duas bichas... um dos veados falava alto... mostrava seus conhecimentos de cinema italiano... De Cicca, Pontecorvo, Antonioni, Bertolucci, falava mal de Fellini... Bandit entra no papo, comenta que gosta de E la nave va, ressalta que Amarcord trás recordações absurdamente lindas de um passado não vivido – a bichona falante mira Bantid e morde os lábios, a bichinha calada baixa os olhos... Gertrude sorri, com poucos dentes –, de qualquer forma, prossegue Bandit, o filme de Fellini que mais me identifico é Os boas-vidas... Bichona fica indignada por perder o centro de atenções e de ser questionada. Gertrude senta do lado e pergunta o nome do cara: Duda Bandit...

    Bandido, ladrão?

    Não, é que ando de moto, uma suzuki bandit... Duda tem um monte por aí, recebi o apelido pela motoca... distinção.

    Bichona experimenta uma mudança de tática... não quer perder sua platéia de bêbados... Nanni Morett, o que Bandit pensava do péssimo cinema feito por Nanni Morett? Autobiográfico e levemente massificado, incisivo... me agrada profundamente, responde o hematófago. Gertrude pôs-se a brincar com seu joelho, os dedos subiam pelas cochas, e desciam... o pau reagia... Gertrude bêbada lembrava as mulheres de Bukowski em seu memorável livro a elas dedicado.

    Bichona partiu para os americanos de raízes italianas, elogiou Tarantino... Bandit, do contra, jogava na sua cara, rugindo, que Tarantino atualmente era um bocó deslumbrado com efeitos especiais, uma criancinha mimada que ganhou moral e fortuna com seus bons filmes para torrar tudo agora em películas idiotas. A bicha franziu a sobracelha, lacrimejou e pediu para Bandit perdoar o Quentin, e o fez também prometer que iria ver o próximo filme do cara... Não desiste de Tarantino, Bandit – derreteu-se, lânguido...

    Sim, não desistirei, por você. Bichona ficou satisfeita. A platéia se acalmou. Gertrude, a pretexto de cochichar no seu ouvido, metia a língua lá dentro... Bandit foi gostando... uma ereção cavalar... Vamos, meu bem – disse Gertrude... Bandit deu um beijo no rosto do veado para amenizar as altercações e mandou Gertrude esperar lá fora, enquanto ia no banheiro... Bichinha disse as primeiras palavras da noite, quase que suspirando: adoooro Pasolini.... Bichona fingiu não ouvir, somente recomendava a Gertrude que cuidasse bem do boff.

    Bandit pegou o corredor em direção ao banheiro e notou que Bichinha vinha atrás... Bandit desabotoou a calça, abriu o zíper, quando ia direcionar o pau no mictório ela pediu para segurar enquanto ele mijava... respondeu que não, iria travar... ela disse que não travaria, que tinha técnicas apuradas... Bichinha pegou o pau do vampiro, apontou na direção da louça, sua técnica era imitar o barulho de água corrente com a boca.... Olhava Bandit, o pau e ria... ria... e imitava uma torneira aberta.... quando a mijada acabou o veadinho já ia colocar o cacete na boca... quase abocanhou... Bandit aplicou-lhe um violento soco e Bichinha foi parar no canto do banheiro, recolhida... amedrontada... Ele foi em direção à porta, mas parou....pensou, porra, mas que mijada boa... voltou-se para o viadinho... caminhou lento em sua direção, pensava só na porra da mijada boa... parou em frente a Bichinha, ainda caída, pegou seu queixo com doçura, levantou até a altura dos quadris, Bichinha ficou de joelhos, ele tirou o pau e ofereceu dizendo: Por Pasolini, baby... capricha!