20.10.07

Duda Bandit vê paisagens...

Para a menina de Madrid



O sol queria fazer sentido, nuvens indecisas pairavam no horizonte, senti gotículas de chuva em meio aos raios da manhã. O ruído da motocicleta embalava minhas reflexões sobre as distrações de nossas almas corroídas pela dúvida... felicidade é distração, cansei de repetir.

Uma partida que não joguei, teimei em dizer a verdade e paguei um preço salgado à prestação... bem feito pra mim... é tudo tão simples quando sou jogador, gargalho enquanto dou voltas e mais voltas no mesmo blefe... mas cansei, estou, digamos, sem paciência para sustentar personagens e tenho mandado à merda os cirquinhos da vida...

Ontem uma tarde de píer, líquida... hoje uma manhã de estrada, ensaio de viagem na impossibilidade do asfalto absoluto. Foram apenas 200 quilômetros, dezenas de curvas e as paisagens que me alentam...

Sempre um verso de Ana C me assombrando, “no flanco do motor vinha um anjo encouraçado”... e resoluções: nada de compras à prazo; perdoei também todos que me deviam, eles não iam pagar mesmo, 18 anos depois eu me tornei o cristão que sonhei ser aos 12, compreendi o Cristo, por assim dizer... é uma religiosidade por eliminação que me resta, uma vez que perdi meu ódio e minha capacidade de amar não tem trazido muita coisa também, só a cruz.

Minha capacidade de amar... tenho falado de uma vida menos sórdida, nas entrelinhas, dos desenlaces e estranhamentos de um serzinho potencialmente apaixonado em sua quixotesca busca pela paz na cama e na vida. Tudo em vão.

(Um cachorro late longe, lembro de Jacimar, o cãozinho do décimo andar, vem a tristeza pela sua morte. Eu desejei a carrocinha para todos os de sua espécie até conhecê-lo. Jacimar me fez entender que os cães, assim como os homens, são únicos, e se diferem pela forma como amam, nada mais. Jacimar tinha o olhar existencialista, a paciência oriental. Sentava-se sereno na porta do elevador de serviço à espera de alguém que subisse e desse uma carona. Ficava ali até atingir o andar mais próximo do décimo. Jacimar parecia um homem carregando nos seus ombros o peso da condição humana, e penso que seu semblante ao ser atropelado foi esse, certamente teria recitado um poema apátrida de Kafavis.)

Assim, com essas e outras tristezas e frustrações, além de risos ocasionais, passo tardes à beira-mar sentado na motocicleta, tardes de píer, e acredito que a Bachiana Brasileira No.5 de Villa-Lobos é a trilha sonora de tudo aquilo que me cai nas mãos e depois escapa... desiderato.

Nunca é demais repetir, estou de saco cheio desse jogo, mas nada me resta senão jogar... sou obrigado, vendi a alma... aliás, apostei. Com cinco cartas na mão visto summer e tenho um charuto na boca... uma vez bandido, sempre bandido, julgamento sumário. Mais uma coisa: Se for para sofrer que seja ao menos com elegância.

Chega a hora de mostrar as cartas, mas não quero agora. O carinha meio louco do apartamento de baixo voltou a tocar piano, eu já não ouvia isso há meses... uma melodia suave e melancólica, deitei no sofá e não pensei em mais nada, meus neurônios agradeceram a folga, sentaram-se, acenderam um cigarro de palha e fumaram leve, brandos, sem pressa de voltar à partida. Felicidade é distração.

13.10.07

BLANCHE

Piazzola, a embriaguez de destilados e um tango desperdiçado... “música contemporânea de Buenos Aires”, me dizia Blanche. Referia-se às esquivas que Astor Piazzola realizava para calar os puristas de San Telmo. Eu não estava interessado em ritmos latinos, mesmo que com colorido europeu e jazz, mas era tudo recalque de uma alminha brasileira inquieta... Tudo que eu queria era “discutir a relação”, deu na cabeça de repente, foi, é remotamente possível, inveja... inveja de casais que percorrem juntos corredores de supermercado e andam de mãos dadas em volta do laguinho no parque... “olha a tartaruguinha, amor”... Inveja pressupõe ódio, e como me falta interesse e sobra preguiça para tanto (ódio exige dedicação), não, acho que não foi inveja... mas queria discutir a relação, não importava que pouco nos víamos e que ela praticamente debutava em minha cama, e naquele dia trouxe a porra do CD do Piazzola.

Blanche é atriz, diretora de teatro, dramaturga e resolveu dar pra mim... e eu querendo discutir a relação... sempre a falta de prática, de tato... “Eu tenho saído com outras mulheres, você se importa?”, provoquei. Ela tragou o cigarro mentolado, uma febre entre as mulheres perigosas, perigo potencializado se elas estão só de calcinha deitadas na cama e o cinzeiro ao lado do encarte da porra do CD do Piazzola. Lançou a fumaça ao som de “la muerte del angel”, me olhou, riu cínica e respondeu que não tinha problema, que “tá tudo bem”, afinal de contas, “eu também tenho saído com outras mulheres”... rolou na cama e ficou de bruços olhando o teto. Eu tenho trinta anos e sou um carinha que disfarça bem os preconceitos, mas vi que qualquer possibilidade de discutir a relação tinha sido frustrada por caso fortuito...

Eu deitei de bruços ao lado dela e apreciava o Quinteto Biyuya em “la ressurreicion del angel”... “minha namorada”, ela disse depois de um longo silêncio, “chega na quarta. Fica uma semana. Nesse tempo sou só dela. Mas depois a gente se vê de novo, te acho um moço muito bonzinho”. Eu mudei de assunto, dizia que era bacana quando o Astor tocava sanfona, ela riu de mim e disse que aquilo era um bandoneón, me explicou as diferenças enquanto eu fingia prestar atenção, por isso não entendi nada, é uma estratégia que uso desde a escola primária, sou um moço muito bonzinho... eu falei que me amarrava na voz de Carlos Gardel e nas letras dos tangos, ela me respondeu que não gostava de tango, só de música contemporânea. Pensei na namorada de Blanche, como ela devia ser, o que fazia da vida, mas não falei nada... Blanche brincava com os calos do dorso de minha mão, herança do boxe.

Perguntei se ela concordava que a traição era um traço genético que algumas pessoas herdam de sociedades antepassadas, os homens infiéis possuem ancestrais poligâmicos, já as mulheres infiéis ancestrais poliândricos... falei tudo com ar professoral para afastar a possibilidade dela achar que era deboche, queria dar um ar científico à coisa... existiam alguns antropólogos do meu lado, não sabia o nome deles, muito menos lido, mas eles certamente não negligenciariam um tema central por excelência. Blanche fez uma pausa, parecia que nem tinha escutado a pergunta, depois confessou nunca ter pensado no assunto, que era um ponto de vista interessante, e que ela certamente vinha de descendências misturadas, mescla dos dois sistemas...

Eu já perdia por dois a zero, pensei noutra estratégia, podia buscar na prosa a solução surrealista da escrita automática, eu ia falar o que desse na cabeça sem me preocupar com quem ouvia, mas tava de saco cheio de André Breton e sua quadrilha (de novo os recalques de uma alminha brasileira inquieta).

Blanche me olhou, deu um sorriso lindo. Perguntou por que eu estava tão calado. Eu continuei calado, retribui o sorriso, dei um beijo suave em sua boca e fui na cozinha beber água. No caminho pensei em Bandoneóns, em milongas, tragédias e Jorge Luís Borges... depois decidi banir da minha vida todas as mulheres que lidam com teatro e curtem “música contemporânea”.