13.11.06

Não pare na pista, Bandit

“Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...”
(M. Quintana)


Zumbi... vampiro? Dá no mesmo. A perda tem dessas coisas, via de mão dupla. Trás dor e depois liberdade. A gente trafega nessa via sinistra, faz opções. Seja numa praia de madrugada, o frio cortando a alma e você não sente; seja na estrada, um caminho pavimentado de escolhas e renúncias. Eu tinha vinte e dois anos.

Procurava nas estantes da livraria algo que dissesse o que eu sentia. Revirando a seção de literatura estrangeira peguei A Metamorfose, de Kafka, e uma voz suave atrás de mim perguntou se “Esse livro é bom?”. Respondi que gostava muito dele, era a história de um cara que acorda um dia e percebe que se transformou em um inseto. Ela falou: “Acontece todos os dias, o mundo tá meio louco, né?” – rimos, achei a menina muito espirituosa em dizer aquilo. Ruas vazias, tarde nublada de sábado, saímos dali para tomar café expresso. A luz da lanchonete refletia em seus cabelos avermelhados. Fogo.

Fizemos promessas, juramos amor eterno, essas coisas. Quando dei pela situação sua mala estava na minha porta, ela sorria e pedia "coloca no quarto, mô." A vida passou a rolar assim, eu trabalhava e ela meditava no tapete da sala .

Três meses depois mudamos de minha quitinete no centro para um modesto bangalô em frente à praia de Jacaraípe, lá no final da orla. Fui contra no início, não queria pegar dois ônibus e ficar em pé uma hora e meia pra chegar ao trabalho, mas ela me convenceu durante o banho.

Chegava cansado e encontrava Anna na varanda com aqueles vestidos de cores suaves, cheiro de sabonete, me esperando; Corria, abraçava e dizia no meu ouvido coisas adoráveis. Eu era mesmo um babaca adorável.

Anna tinha mania de ficar pelada em casa usando minhas camisas sociais. Era sempre a camisa preferida entre as preferidas, aberta, mostrando os seios e o púbis encarnado quando andava. Tinha um talento sobrenatural para descobrir a que eu pensava em vestir no dia seguinte. Usava e escondia. Quando eu ia sair não encontrava mais. Brigava, mas ela só me olhava. Mandava escolher todas as minhas camisas que gostasse e jogar tudo no armário dela. Ao menos ia parar de me desfalcar na hora em que mais precisava. Ela sorria e me abraçava, roçava o nariz na minha barba. Depois ficava caladinha no meu colo. Eu mandava todas as camisas favoritas do mundo à merda.

Final de semana a gente ficava na cama até tarde, café na bandeja e Caetano Veloso. Anna dizia “Vou ser sua pra sempre.” Eu advertia que mentir era feio. Uma vez pegou uma bisnaga de queijo cremoso e rabiscou no seio direito: L U I S. Tem um monte de nome assim por aí, disse. Então tentou escrever E D U A R D O no outro, mas como o nome era comprido se contentou com D U D A, contornando o mamilo. Desse dia em diante nunca mais me chamou de Luis Eduardo ou Luis, sempre de Duda. Fui batizado pela segunda vez, dessa vez com queijo cremoso e bico de seio.

Eu trabalhava e Anna lia os livros, vivia perguntando sobre escritores, filosofia. No dia em que resolvemos começar um jardim pediu “Quero aquela flor da Ofélia, dá para conseguir?”. Expliquei que o nenúfar era uma flor aquática, precisava de um lago. “Ah! Que pena.” – resignou-se com aquele rostinho de menina.

Anna lia os livros e mudava. Continuou adolescente e jovial com Shakespeare, tornou-se impulsiva lendo Goethe, afetada em Oscar Wilde. Com Camus tomou gosto por longas caminhadas na praia e já não me esperava no final da tarde.

Uma galera freak começou a fazer ponto na praia, em frente ao bangalô. Anna fumava um baseado com eles vez em quando, e falava, falava... Eu via da varanda e tinha receio de me aproximar. Na única vez em que o fiz ela se calou. Um cabeludo com cara de fome mantinha a conversa, falava de anarco-individualismo, autonomia do indivíduo, Van Gogh e quadrinhos. O cara puxando fumo na praia com o dinheiro da mãe pensionista do Estado e falando de autonomia do indivíduo... aquilo me enojava. Anarquismo individualista sem conhecer Max Stirner, autonomia do indivíduo sem Emma Goldman, Van Gogh sem Artaud.... um dia joguei tudo na cara de Anna, ela chorava e me acusava de arrogante, presunçoso... deixei ela falar tudo, respirei, encarei firme e contei que devia minha vida ao orgulho, sem ele teria sucumbido a um cotidiano patético e insignificante, uma vidinha corrompida, feita de afagos mútuos. O orgulho havia me livrado das expressões "foda", "maneiro" e "demais" na saída do Metrópolis depois de um filme de Bergman. Eu não tinha me traído, ainda não. Ela quis saber do meu afeto, do meu querer... Anna, eu dizia, preciso de você porque pouca coisa é sólida... acho que você é livro, eu escrevi você e você me escreve... só isso... Ela pegou a minha mão e colocou embaixo do vestido, dentro da calcinha, segurou firme lá e perguntou se aquilo era página... eu tentei beijá-la, mas ela não abriu a boca, joguei seu corpo em cima da mesa e penetrei a gruta árida. Anna me olhava, me olhou até o fim, e eu podia ver nos seus olhos o reflexo de um homem no lago... eu mesmo.

Nosso afastamento foi crescendo. Tentava me reaproximar dela, mas, porra, quanto mais eu tentava pior ficava. Anna começou a sair sem rumo, sumia dois dias e depois voltava como se tivesse ido à padaria. Pirei, comprei um revólver 38 e ameaçava atrocidades, não ia mais pro escritório, mandei meu chefe tomar no rabo. Foi minha primeira demissão. Ela pouco se importava com tudo, chego mesmo a dizer que se divertia com meu circo de horrores.

Chegou o dia em que esperei semanas e nada. Ela não voltou. Não ligou, nem um recado. Mas ainda tinha esperanças. Aguardava sempre na varanda com a arma carregada, até tarde. Engatilhava e desengatilhava. Estava tão perdido que até a possibilidade do suicídio pareceu um caminho intrincado, não seria capaz de encontrar a estrada da morte sozinho, mesmo olhando um mapa rodoviário.

Depois da vigília eu andava na praia de madrugada com o revólver na mão, voltava ao amanhecer ou dormia na areia. O ar faltava, o inferno fatalmente fecharia as portas e minha temporada se faria permanente nesse dia.

A redenção veio de rajada. O vento derrubou as peças do tabuleiro. Saí do Xeque por acaso e a partida recomeçou lenta, sem a droga do cronômetro. Senti frio de novo e o dia já despontava no horizonte, um riscado de fogo na linha do oceano.

Caminhei procurando um lugar para enterrar a arma, tinha me custado uma grana e eu poderia precisar dela um dia. Enterrei ao lado de uma castanheira, marquei o local e voltei pra casa, tinha que devolver o imóvel, o dono queria de volta. Comi um ovo cozido, contei quanto dinheiro me restava, enfiei no bolso, arrumei minha mochila e fui embora. Na saída virei pro bangalô e dei uma banana. Era agosto e segui pelas ruas vazias em direção ao ponto de ônibus. O vento zunia no meu ouvido e me lembrava uma verdade que martelava minha cabeça: Eu agora era imortal.

23 Comments:

Blogger Duda Bandit said...

desse continho eu não gostei muito...

8:04 AM  
Anonymous Anônimo said...

Somos nossos maiores críticos. Abração.

10:17 AM  
Anonymous Anônimo said...

Gostei do romantismo, do bangalô no final da orla, da varanda, do café na cama...Uma bonita história, não sei porque, me lembrou Camus. Que tua semana seja livre...

11:30 AM  
Anonymous Anônimo said...

São essas coisas de Nick Belane...

12:23 AM  
Blogger Julio Cesar Corrêa said...

Atirar nas ondas é sacanagens. Cantarolar um blues achei meio clichê, mas o resto está bom. Não sei pq vc não gostou.
gd ab e ot feriado

4:30 AM  
Blogger Duda Bandit said...

É verdade, Wiskow.

Sou um romântico, Anne'marie.

Pulp é ducaralho, anônimo.

Sempre considero sua opnião, Júlio. Tá anotado.

abração.

Saulo.

9:48 AM  
Anonymous Anônimo said...

eu gostei, também.
principalmente da parte das camisas :)
vc está adicionado aos meus favoritos, continuarei te acompanhando...sempre ansiosa por uma nova história.

4:11 PM  
Anonymous Anônimo said...

Sabe onde tem mais dessas Annas por aí???

Me diz, para eu passar longe...

Por isso eu sou machista...

6:19 PM  
Blogger Thiago Luz Raft said...

Caramba, Se sabe que eu to tarado no Marcos Rey, Foi tão gostoso ler esse conto quanto os contos do Marcos, Os inéditos ainda não li... Abraço...

6:16 AM  
Blogger Duda Bandit said...

ô Carmem, valeu a visita... abraços.

Hermano Ernesto, las chicas... las chicas... todas são assim: é só dar chance. Quem bom, né?

Raft, seu "vagabundo" iluminado. não mete Marcos Rey nessa porra. Não pronuncie este nome em vão. Só você, cara, duas semanas em Santa Teresa, frio das montanhas, vinho aristocrático, lendo Marcos Rey. depois me conta do Zé Pororoca na terra do ecologista... seu boneco é ducaralho.


abração

Saulo.

11:30 AM  
Blogger Duda Bandit said...

ô Carmem, valeu a visita... abraços.

Hermano Ernesto, las chicas... las chicas... todas são assim: é só dar chance. Quem bom, né?

Raft, seu "vagabundo" iluminado. não mete Marcos Rey nessa porra. Não pronuncie este nome em vão. Só você, cara, duas semanas em Santa Teresa, frio das montanhas, vinho aristocrático, lendo Marcos Rey. depois me conta do Zé Pororoca na terra do ecologista... seu boneco é ducaralho.


abração

Saulo.

11:30 AM  
Blogger Hanne Mendes said...

Sei q isso não é nada original, mas vc me surpreende!!
Lindo texto, belo final.
Todo talento do Duda!
Adoro ler tudo isso!
Brigada por mandar o seu email, tá??
Bjim, t+

3:42 PM  
Blogger Jorge Ferreira said...

puta que pariu!...tu elogiou meu conto...mas tenho que dizer aquele nao chega aos pes desse aqui...grande abraco!

2:35 AM  
Blogger Marilia Kubota said...

eu gostei...mas achei que pode melhorar...o ritmo é um pouco rápido demais, talvez. e claro, mt influência beat.
um beijo

9:10 AM  
Blogger Marilia Kubota said...

eu gostei...mas achei que pode melhorar...o ritmo é um pouco rápido demais, talvez. e claro, mt influência beat.
um beijo

9:10 AM  
Blogger Marilia Kubota said...

eu gostei...mas achei que pode melhorar...o ritmo é um pouco rápido demais, talvez. e claro, mt influência beat.
um beijo

9:10 AM  
Blogger Julio Cesar Corrêa said...

Não tem post novo? Tudo certo. Aproveito para lhe desejar uma semana nota mil e um gd abraço

9:47 AM  
Anonymous Anônimo said...

mulher é isso, por trás de nosso sucesso ou derrota, sempre tem uma delas. e isso não é clichê, e só a verdade.
muito bom, cara.

3:44 AM  
Blogger Duda Bandit said...

beijo pra vc também, Hanne... açucarado.


ô, Jorge... Que isso. Karem ficou no meu coração.

Marília, sempre um prazer te ler... a idéia do ritmo é essa mesmo... Rock na veia e café demais. Mas penso em reescrever esse texto outro dia com outra atmosfera. valeu a dica.


não, grande Júlio... sem Post novo. acho que só deve rolar alguma coisa domingo, estou ruminando ainda.


Dewizqe, abração... adorei seu texto sobre a morte... vou te linkar aqui.


até mais...

Saulo (db)

4:25 PM  
Blogger Julio Cesar Corrêa said...

Duda, os personagens do Plínio são marginais mesmo, totalmente excluídos. Os meus são apenas pessoas de classe baixa que estão se virando. Amo a obra do Plínio e quase tive um orgasmo ao assistir à Navalha Na Carne, tanto a peça quanto o filme. Um dia irei a Vitória com a minha peça.
grande abraço

2:04 PM  
Blogger Thiago Luz Raft said...

To de volta na ilha... Segura que agora pirou geral... Quero ver se armo uma festinha com vinil na UFES... To precisando pirar... Abraço.

5:10 PM  
Anonymous Anônimo said...

Òpa, e as novas?? Cara, mudei todos os end. dos meus blogs.
www.fabulario.zip.net e
www.wiskowcontos.blogspot.com

abração

6:19 AM  
Blogger João Jales said...

Imortais: todos somos, Duda.

Do caralho. Simplesmente.

11:22 AM  

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