27.6.07

Duas semanas...

Duas semanas, Hibari ligou apenas uma vez, e rápido. Hanna deve estar conversando com o homem do paletó negro numa noite morna. Dimitri teve aqui de manhã, me acordou, o sacana. Sábado e o filhodaputa tecla meu interfone às nove da manhã.

-dormindo ainda, Duda?

-não, tava costurando minha fantasia pro carnaval do ano que vem.

-posso subir?

-se eu não deixar você vai embora?

-não.

-então sobe.

Abri a porta e fui na cozinha fazer um café, mas desisti. Enchi um copo com água e fiquei sentado no chão olhando o teto. Dimi entrou, veio até a cozinha, acendeu um cigarro perguntando ao mesmo tempo se podia fumar, nem me dignei a responder. Ele sentou num banquinho e ficou me olhando com cara de sambista em início de roda de samba, o chapéu imitando panamá e a camisa branca meio aberta ajudavam na caracterização, ficou ali me olhando com um meio sorriso. Quebrei o silêncio.

-bicho, são nove e vinte. Cê não dorme não?

-durmo, mas é que faço parte da malandragem sindicalizada. A gente abusa do horário e faz farra durante a semana, mas no fim-de-semana a gente tem trampo, amanhece na rua e não dorme... é assim que a gente encontra contatos importantes, realiza negociações paralelas ao... digamos... fluxo mercantil formalizado! Fui mostrar um terreno prum cara sete da matina, o sujeito é aposentado, mas gosta de acordar cedo. Se sair negócio garanto o buteco do mês. E eu levo jeito pra corretagem, hein? Tenho futuro nessa carreira.

-carreira, Dimi... eu sei pra quais carreiras você leva jeito, brother...

-essas também.

Dimitri era um malandro ex-leninista, ex-trotskista, ex-maoísta, que curtia uma de seguidor de Rosa Luxemburgo nos botecos e tinha o desejo pragmático de compor a "terceira via" vez ou outra, esse desejo sempre vinha quando ele estava sem grana e queria ocupar um cargo comissionado no governo, qualquer governo. Mas ele não precisava de muito dinheiro para viver, era amparado por duas mulheres: uma "amiga" e uma tia. Morava com a tia que preparava Nescal gelado todas as tardes antes dele sair em direção à universidade em cujas salas de aula ele pouco chegava, fazia filosofia há uns dez anos, no mínimo. Na amiga o malandro passava na entressafra de mulheres, saía de lá sempre com algum para a cerveja e o ônibus.

Dimi me chamou para sair, ir na Vila Rubim beber umas. Eu tava mal humorado, aliás estou sempre mal humorado sábado de manhã. Saí assim mesmo, pensando por que eu andava com esse tipo de gente, mas dando uma olhada no visual do cara, vendo a paixão que o sujeito tinha pela vida, respondi minha pergunta... Não suporto gente parecida comigo, detesto burocracias e burocratas. Dimi não tinha vocação para a burocracia, seu desejo de ocupar cargos em governos vinha do desejo de ter um emprego ao invés de um trabalho, nada mais.

-mas a gente vai à pé, Dimi?

-caminhar alonga a vida, bandido.

-já tou preparado pra morte, porra.

A gente caminhava em silêncio, da minha casa na rua Sete até a Vila demoravam aproximadamente vinte minutos em passo suave. O sol estava agradável. Eu pensava em minha cama ainda. Um cão vagabundo andava pela calçada, já devia ter dado muito drible em carrocinha, mas não se assuntou comigo e com Dimi, sentiu-se irmanado, até voltou e seguiu um pouco nossos passos, mas desistiu quando viu que íamos para o lugar que ele acabara de deixar. "Leva pra você", brincou Dimitri.

-não, tá melhor na rua... Mas se eu levasse daria a ele o nome de Augusto, o cão da meia-noite... homenagem a Marcos Rey.

Seguimos calados, eu já me acostumava com a idéia de ter acordado cedo no sábado. O mercado da Vila Rubim estava cheio, as ervas, temperos, lixo, tudo entrava pelas narinas deixando um aroma único, cheiro de vida, de realidade... paramos numa banca e compramos amendoins na casca, depois pedimos cerveja num boteco, chegou estupidamente gelada, a primeira refeição do dia, amendoins frescos e cerveja. Dimi começou um discurso a respeito dos benefícios do amendoim e sua aplicação culinária, citou Gilberto Freire e Câmara Cascudo, ele sempre citava os dois quando falava de comida. Depois me perguntou sobre a vida e as mulheres.

-dá para separar?

-como?

-dá para separar as duas coisas, vida e mulheres? Na minha vida não, Dimi.

-é. Você tá meio derrubadão. Duda Bandit chega à decadência.

- tão na cara assim?

-uhum...

Aquilo me alertou. Eu sabia que tava meio murcho, as meninas no fórum comentavam que meu sorriso tava meio triste, mas até aquela hora as coisas não estavam tão claras assim, ao menos para mim. Minha primeira reação foi o ataque:

-vai pra porra, Dimi. Eu penso em mulher no sentido coletivo, uma ou duas não são capazes de causar danos consideráveis na minha carapaça. E eu tô muito bem, falou... decadência!... tenho desprezado mulher, bicho.

-então é mais grave. O velho Bandit desprezando as molecas é sinal de degeneração dos tempos, da classe dos ordinários.

Dimitri começou a rir. Eu achei que tava na hora de tentar me abrir, mas nem eu sabia ao certo o que sentia. Fui devagar, escolhendo as palavras.

-você tá rindo, cara... Mas agora vou falar sério – dei uma golada na cerveja para ganhar tempo e prossegui –, eu tenho estado sem ânimo mesmo... Sem paciência para ouvir papo de menina, sem aquela garra que eu tinha para ir atrás de um rabo-de-saia onde quer que ele estivesse... e tenho tido ciúme, é pode rir, tenho tido ciúme da Hanna com o babaca que ela arranjou, tenho tido raiva da Hibari porque ela não vem embora de Belo Horizonte... e tenho tido pena de mim, cara... autopiedade, já pensou nisso?... tem hora que dá uma vontade de chorar, uma coisa meio louca de vagar pela casa buscando algo para fazer e não achando nada interessante, e aí pego o capacete para rodar pela cidade e fico sentado com ele no sofá vendo novela, desanimo de sair... Eu ainda chego às vias de fato, irmão. Eu tô quase chorando por solidão, a mesma que me foi tão grata no passado.

-eu choro.

-porra, mas você chora até em final de brasileirão, Dimi. Eu não, sempre fui mais árido pra isso. Mas ainda não chorei, só estou compartilhando uma preocupação. Se a coisa continuar assim...

-vai passar...

-passa sim, mas você não conhece aquela do Millor? “Átila também passava. E todos vocês sabem o que acontecia com a grama”. E tem mais, rolo compressor também passa, furacão, mas e o que sobra é suficiente, cara?

-ih!... vamos pedir mais uma. O mano véio tá precisando encher a cara. Vamos conversar sobre O banquete de Platão.

-vão!... Começa com você...

Ficamos ali, eu e Dimi. Falando sobre o mito de surgimento do amor misturando Platão, Ovídio, Santo Agostinho, Shopenhauer, Nietszche e Barthes. Um papo sem metodologia, mesclando conceitos, sem culpa, atribuindo citações nossas a algum filósofo para dar mais peso à argumentação... foi uma bela manhã de sábado que se estendeu até o fim da tarde. Dimi foi direto pra casa da "amiga" trepar e dormir... eu fiquei vagando pelo centro, bêbado de filosofia e cerveja...

24.6.07

Sábado e feriado ao mesmo tempo...


Sábado e feriado ao mesmo tempo, Tiradentes mais sem graça. Acordei quase às duas da tarde e nem saí ontem, fiquei em casa vendo
Como água para chocolate na cama sozinho (coisa de veado, tenho que admitir), depois li umas páginas do Tristessa de Kerouac e, putamerda, quando o cara mistura estrada com budismo de bebum só vômito mesmo, um pé-no-saco. Fui dormir quase às três da madrugada. Quando levantei, preparei um café forte, cozinhei macarrão penne al dente e fiz um molho misturando manteiga, alho, creme de leite e queijo prato. Abri uma garrafa de vinho e fiquei ali comendo, achando aquilo o máximo e nenhuma fêmea para me dizer isso.

Recebi uma ligação no celular, era Hibari. Dizia que o famigerado (palavras minhas) congresso feminista tinha sido "o máximo", que a mulherada preparava-se para "avançar em um estágio espiritual superior", que estava muito feliz com isso, que tinha conhecido uma terapeuta reichiniana que era "o máximo também" e que ia ficar na casa dela uns dias. Eu fiz macarrão, amor. Ela nem ligou, continuou na da seguidora do Wilhelm. Depois disse que ia desligar e desligou falando em talvez ficar um tempo ainda maior por lá, "muito trabalho a ser feito".

Se fosse um ano antes isso seria meu sonho. Adoraria que ela fosse pra um congresso destes e não voltasse, mas agora, depois de um longo processo em que ela quebrou as barreiras de meus preconceitos, que violou cada muralha de minha solidão voluntária, agora ela ia me deixar sozinho esse tempo todo?

O macarrão ficou meio sem graça, o vinho virou vinagre e resolvi sair de moto para arejar meus preconceitos. Essas feministas espiritualizadas são um câncer a ser expurgado da sociedade, são piores que as feministas petistas ou as feministas machinhos, pois seu poder reside na sutiliza, elas chegam como quem não quer nada, ouvem a gente, concordam cinicamente com o que dizemos, mas na verdade preparam anotações mentalmente, nos medem, testam nossos reflexos, dissecam nossos nervos, pontos de vista, depois processam um plano sórdido para entrar em nossas fortalezas e invadem rápido, as malditas, espalham fontes de água e jardins japoneses nas nossas praças vencidas, as janelas de nosso ser são enfeitadas com jardineiras de gerânios, espalham pelas mesas de canto vasos de gérberas... um nojo, um saco. Quando certificadas da vitórias elas nos ameaçam, tacitamente, de dar no pé, as plantas ficam meio murchas, tristes, as carpas emagrecem a olhos vistos, umas bárbaras, isso é que elas são, umas bárbaras...