21.10.06

Cigarro é uma solidão que sai fumaça

Eu, que nunca gostei deste gosto amargo de nicotina na boca, nem das bocas nicotinadas beijadas, sinto agora esse desejo, ficar no fundo do boteco vendo a fumaça saindo por entre os dedos, meio que azulada pela luz quando estou no bar do Simpson.

Aprendi a ter prazeres assim, acredito, com a minha motocicleta. De tanto testar o motor observando o escapamento, passei a sentir êxtase na fumaça expulsa de suas explosões, restos de combustão, cheiro de combustível queimado, potência... e no fim a fumaça, um resíduo sublime disso tudo, um gozo.

Tô quase assim, consumindo gasolina, soltando fumaça pelas ventas, tenho vontade de potência, vontade, muita vontade.

(a gasolina pela cerveja, gim tônica ou vodca)

Soy Motorizado, pero fodido: um carburador que suga muito combustível engasga e rende pouco. Fumaça, bielas fora de ritmo. Tanto álcool pra nada... só fumaça e uma nostalgia fodida de injeção eletrônica.

Naufrago, à deriva, uma ilha deserta... e deserto. O motor morre e neste dia não vou trabalhar, é o segundo essa quinzena... Sempre se dá um jeito, sempre há uma viagem inadiável, sempre há um parente na enfermaria, um recém-nascido pra visitar, o que seria da humanidade sem nossos motivos de força maior?

Gosto tanto de motores em V, barulhentos, dispostos, anárquicos, mas sempre fui um cara horizontal. Eu vibro menos. Eu me adapto ao asfalto. Sexta visto roupas com motivos indianos e como vegetais no Sol da Terra. Aos sábados, de camisa pólo, boné e Ray Ban, traço uma picanha no Espeto de Prata.

A coisa não é solenemente culinária, embora tenha muito disso. À noite não acredito nem em deuses que dançam, mas ao amanhecer sou capaz de ver a aura das pessoas. Às vezes tem um monte de sofrimento nisso, outras sobra apenas ironia - tem diversão também, um pouco.


Um dia eu calo, noutro ataco: "... só posso concluir que sua tese está equivocada, meu caro, só é possível aceitar as considerações de Kierkegaard sobre o cristianismo se aceitarmos um sistema de valores schopenhaueriano”.


(Fumaça...)

Tem trouxa que cai, os mais cabaços. E revisam pontos obscuros de suas teses. Eu gargalho cínico em meus cilindros, dentro do motor, mas mantenho meu olhar sério, digno e raivoso de poeta incompreendido, de fumante tardio, de máquina.

Eu blefo, senhores. Pouco me importam as cartas, o combustível, o jogo, o ex adverso, ele também um blefador.

Uma vez deixei de comprar um Baudelaire para provar absinto. O livro ficou na livraria, mas anotei um versinho na mão para memorizar depois enquanto a bebida descansava no copo:


Hypocrite lecteur, - mon semblable, - mon frère !

(hipócrita leitor,-meu igual,-meu irmão!)


13.10.06

A Ilha dorme cedo...

A ilha dorme cedo... os gatos saem, ronronam em meio ao lixo não recolhido, fogem de cães noturnos... os gatos que se amam, amam ruidosamente nos telhados molhados do início de primavera...

É assim esta primavera, quente e úmida... a ilha ainda não firmou suas estações... chuva, sol, chuva, sol...

Chuva morna embaçando o pára-brisa, o limpador enxota os pingos d'água enquanto dança fora de ritmo...

Bocas em silêncio ouvindo Chico Buarque e a curva mostra pouco a pouco o caminho que segue, a estrada irregular levando à saída da ilha e em breve a volta à ilha...

É a noite em Vitória... um constante sair e entrar na ilha por suas seis pontes... bem mais pelas três entre Cariacica e Vila Velha, ou a da Passagem, que liga Andorinhas à UFES, caminho da Lama, Jardim da Penha.

Chico passa a bola para o jazz, Thelonious Monk ao piano executa a trilha sonora de um olhar melancólico pré-porre.

Ainda é metade da noite... Amigos identificados nos bares que surgem no vidro, enquanto passamos devagar em frente à calçada... alguns felizes, brindando para não ficarem sete anos sem trepar, e como diz meu amigo Craft, não precisarem depois de uma rara boceta ruiva para quebrar a maldição, tem que ser autêntica, encarnada de nascença... E é quase sexta feira 13, o misticismo solto, os terreiros calados, Eguns libertos, Zé Pelintra virando cachaça no balcão.

(Horas antes, uma tarde cheia de lirismo, o passado presente na arquitetura da cidade alta, a natureza caótica da Gruta e Camille Claudel...
...Camille Claudel se negando a ser a sombra de Rodin, mas uma sombra no meu coração desnudado... Bec, minha amiga novaiorquina, com vontade de abraçar a velha, beijar o bronze frio. Éh muiiitwo bonitooo! - faz pausa para escolher as palavras em português, eu, que entendo lhufas de inglês, peço para ela falar no seu espanhol de seis meses em Buenos Aires: nãô, iô quiro falar em pórtwugués! Ok, concordo, e aguardo as palavras que saem belas, novas em folha.)

A chuva dá um tempo... Estamos agora no Geraldo, lama, continente. Uma galeria de gente conhecida e desconhecida que entra e sai, lembranças que vêem à tona, o anarquista Bola de Sebo, sentado a meu lado, relembrando sua militância católica e sua expulsão da igreja... Sampaio cruel saindo das caixas de som, até fazer o aparelho bater as botas (nem ele resistiu ao cara que botou o bloco na rua). Sem som, o ruído do bar fica mais cotidiano, risadas mais altas, vozes roucas que se elevam em uma discussão sem fim nas mesas de fora..

O barulho vai cessando, o dinheiro... Vamos ficando sozinhos no bar, garçons já começam a recolher mesas. É a hora mágica, entre às três e quatro e meia, em que os gatos voltam para casa. Selam-se as garrafas de cerveja temporariamente, uns malucos, inconformados, parecem não acreditar que os bares precisam fechar; outros, descaradamente, vão disfarçando, ficando... parecem premeditar seu esquecimento lá dentro, poupando o trabalho de voltar na próxima noite.

Mas não queremos casa e cama vazia, rodamos os bares do porto, do parque... e nada dos gatos. Tudo fechado. Carros parados, uma viatura passa devagar, uma belíssima policial me olha, vontade de jogar um beijo, me acovardo... há coisas sérias a resolver, um dilema político: O que fazer?

Craft bêbado no banco carona ouvindo jazz faz declarações populistas, “Se tiver um baseado tá tudo bem!” Miranda, fuçando suas lembranças leninistas, propõe sem muita convicção o lema: "Um passo atrás para dar dois à frente", ou mais claramente, o encerramento do porre para recomeçar depois do meio dia... não há objeções, embora alguém ensaie um protesto tímido.

Sem muita certeza nos despedimos, um carro em cada direção e Bec confusa é abduzida pela gente...

Bec, Craft e eu... adiante, sem ter para onde ir, vamos apenas, o asfalto pelo asfalto.

Camburi, quiosques abertos, insensatamente abertos... carro parado, a argentina louca da Liliana Felipe cantando que tipo de homens eram os romanos, fazendo uma ode ao orgasmo clitoriano, e embolados na canção chapamos as últimas cervejas da noite, ou as primeiras do dia, tanto faz... tiozinhos e tiazinhas saudáveis passam pelo calçadão onde colocamos nossas cadeiras, andam apressados em seus exercícios físicos, correria da vida moderna. O dia vai saindo nublado, lambendo suas primeiras criaturas, os primeiros viventes desta sexta-feira em que o peso da existência é menor que o de uma pluma de gaivota.


O dia termina de amanhecer no pier de Yemanjá, a gente sentando na escada com o pé quase no mar, eu digo uma coisa sem graça tipo “Woody Allem vai dirigir Tubarão III”, pequenas implicâncias, um sarro northamerican, um poema batido de Pessoa sobre as lágrimas e o sal do mar e uma vontade fudida de beber café.

Sei, hoje estou mais vivo que ontem... bate uma nostalgia de padaria, sentar ao balcão em frente a uma atendente simpática. Diálogo ameno, doce, à seis e meia da matina. Pedimos pão, jornal, café e na hora de ir embora um sorriso iluminado me acompanha até eu sumir na rua...
Bom dia!