20.9.07

"IL"...


Eu não falo em paisagens, antes falo de acordar junto, com toda a delicadeza e horror provenientes da entrega – o que por si, uma vez que estou sozinho e nada me resta senão lembrar, me vem à cabeça, imagem vigorosa, teimosa, contumaz, lusco-fusco no horizonte, fragmentos da madrugada... nesta noite tinha a chuva, barulho da enxurrada na escada, os gemidos e a confusão do corpo, surpresa de detalhes descobertos depois de doze revelações, dedo deslizando em pele lisa, perfume natural, narina em brasa... mas os malditos neurônios não se calaram um minuto.

Foi nesta atmosfera caótica que deixei "IL" radiante na porta de um táxi ao amanhecer, ela me deu um beijo no rosto e fechou o vidro enquanto apontava o caminho para o motorista, articulava os lábios e eu não ouvia o som, foi quando me lembrei de filmes mudos e uma adolescência hedionda. Tenho descansado meu Jack Daniels, uma vez que uísque remete a outra atmosfera, um caos que se ressente de ser caos; destarte, no dia em que nos conhecemos, eu bebia um vinho de tanino suave, taça pousada e nossa conversa circulando a mesa, vozes em dueto... eu dizia que tinha saído de dois relacionamentos conturbados, ela me dizia que vivia no inferno. Simpatizarmos era um imperativo, jamais uma vontade...

Os imperativos acabam em cama, é um fato. Mas os fatos se repetiram por seis semanas e doze trepadas. Na quinta vez ela me confidenciou que adorava dormir semi-nua, protegida apenas por calcinhas minúsculas, mas o marido proibia. Queria "IL" de blusa grande, saia e meias, só a tocava nestas ocasiões, sem retirar nenhuma das peças... eu não perguntei o motivo, nunca simpatizei nem antipatizei com pessoas que possuem fantasias sexuais, eu sou até capaz, por educação, de ajudar a realizar uma ou outra de menor potencial ofensivo, mas acredito que seja coisa de gente média com pouquíssimo tesão e atração pelo corpo em si, coisa da manada, Paulo Maluf deve ter fantasias sexuais parecidas com as de Marta Suplicy... "IL" não tinha fantasias sexuais, apenas queria ser fodida decentemente, ao mesmo tempo eu andava em vias de recuperação de minha libido perdida em curtos-circuitos sentimentais recentes... ela teve paciência, compreensão e doçura... por isso sou grato a "IL", mas dormir junto nunca fez parte de meus planos, muito menos em minha cama.

O marido de "IL" viajou na sexta e só volta no final da tarde deste domingo, eis o trilho que a trouxe esta noite. Descobri quando perguntei se ela não ia embora, e doce, musical, ela explicava enquanto pedia acolhida com os olhos... dizia que ia ficar sozinha em casa, que Ele (sempre se referia a ele como Ele) tinha ido para um congresso religioso, citou uma palavra que lembrava construção civil, e depois lamentou-se que era trocada por reuniões, representações, enquanto a imagem do demônio era associada a ela por Ele e por todos os membros da famigerada denominação.

Pouco compreendo o quadrangulares e os pentencostais da vida, nem faço esforço... naquela hora eu só tinha uma coisa a fazer, foi quando enlacei "IL" nos braços e a levei de volta à cama, tentando buscar na essência de sua flor a força da terra, a genealogia do divino.

"IL" amanheceu em meus braços, pediu um copo d'áqua e disse que precisava ir, chamou o táxi e descemos... o carro virou a esquina e caminhei pela rua ainda úmida enquanto o sol ameaçava despontar, eu desviava das poças, mão no bolso, em direção à padaria para o primeiro café do dia, meio que sorridente, meio que melancólico, duas certezas pairavam, a da poesia do momento ao lado do conforto da ultima vez, além de reflexões acerca de quantas vezes eu ainda repetiria este ritual com outras mulheres, um gato atravessou a rua e pulou o muro, baratas se escondiam nos bueiros que eu saltava, e depois moscas no balcão... a vida, verdade irrefutável, fluía, fluía... tive ímpeto de me matricular em um curso de yoga, jogar I ching, transar meu lado transcedental... mas o café chegou repelindo qualquer capricho de metafísica, não é hoje que vou levitar.